Era segunda-feira no meio do Carnaval, dia 24 de fevereiro, quando eu acordei ainda na madrugada com os alertas no meu celular que as bolsas estavam "despencando" no exterior. Na ocasião, ainda me referia assim a uma queda de 3%. Enquanto me arrumava para ir para a Rádio Gaúcha, mandei um áudio perguntando o que estava acontecendo para o diretor de Operações da Mirae Asset, Pablo Spyer.
Já na redação, ele me mandou a resposta em áudio. Fui entendendo que era algo grave e segui ouvindo Spyer enquanto entrava no estúdio. A colunista Kelly Matos apresentava o Gaúcha Hoje e me viu de olhos arregalados, sinalizei que era algo forte e ela me chamou no ar, pedindo que eu rodasse o áudio do entrevistado. Ele explicava que o vírus que, até então, preocupava mais a China tinha chegado com força na Itália e que uma fábrica da Samsung tinha sido fechada na Coreia do Sul.
Em um momento do áudio, Pablo Spyer diz:
- Isso vai parar o país (Coreia do Sul) e está deixando os norte-americanos apavorados. Falei com meu amigo em Nova York e ele está apavorado.
Aquilo rodou no ar e me deu um arrepio. Será que era uma projeção drástica demais? Confio há tempo já na avaliação do diretor da Mirae Asset, uma empresa coreana, aliás. Fiz uma cara que misturava espanto com dúvida para a Kelly, mas as horas e dias seguintes foram de mais tensão no mercado financeiro. E, desde então, saíram das bolsas para a economia real, passando por tristes acontecimentos na área de saúde. Me dói em especial quando leio que países estão tendo de optar por não tratar idosos porque o sistema de saúde não tem capacidade ou que familiares precisam dormir na mesma casa que seus parentes mortos pela covid-19 já que o serviço funerário também não dá conta.
A cena em que entro no estúdio com o celular no ouvido passa pela minha cabeça diversas vezes ao dia. Hoje, em especial. Pablo Spyer voltou ao trabalho hoje após quase um mês afastado. Ficou doente, não foi testado como tantos e está aí a subnotificação das estatísticas brasileiras, mas um médico do Hospital Albert Einstein deu diagnóstico clínico de coronavírus.
- Eita bicho forte, Gi - me disse ele quando liguei há duas semanas e ele já estava "bom", mas tossindo com frequência ainda.
E seguiu:
- Entendo porque os idosos são aguentam. Tu tem sede porque o suador é muito forte, mas está cansado demais para ir buscar água. O pulmão dói e não consegue dormir por causa da tosse. Eu tossia tanto que os vizinhos gritavam que eu não tinha mais chance - contou, mas rindo como é do jeito do Pablo Spyer, também conhecido como Touro de Ouro ou pelo Minuto do Pablo, uma gravação diária sobre a projeção do mercado que faz todos os dias. E que foi retomada nesta segunda.
Sofro com o coronavírus desde janeiro, quando noticiava os movimentos nas bolsas asiáticas e tentava entender o que estava acontecendo. Longe ainda de imaginar como isso chegaria aqui, falando em aspectos de saúde. Em fevereiro, com o impacto aparecendo na Coreia do Sul e na Itália, a gravidade ficou mais clara, com os mercados financeiros despencando. E eles antecipam o reflexo na economia real, que, por sua vez, é o espelho da intensidade do problema na saúde. Monitorando os gráficos ainda na redação e antes do home office, já colecionava sobressaltos com os números.
Agora, assim como diversos leitores e ouvintes, estou em isolamento com meu marido e filhos. Posso fazê-lo porque o Grupo RBS permite e fez questão. Com isso, nos protejo e preservo quem precisa sair para trabalhar na rua. Sou privilegiada e tenho ciência disso. Mas dói a saudade dos meus pais, além da preocupação com meu irmão e com minha cunhada que é médica de linha de frente. Entro em alerta quando recebo qualquer mensagem no grupo da família.
Sofro ao falar com empresas que estão demitindo, empreendedores que não sabem como fechar a conta do negócio, pessoas sendo dispensadas do emprego e autônomos que não sabem quanto tempo ficarão sem trabalho. Sofro até com algumas pessoas que me ofendem desde o início, quando criticam que o espaço para a covid-19 é grande demais. Vejo que estão tensas demais com seus negócios. Crises econômicas sempre me sensibilizaram muito no exercício do jornalismo. Agora, envolvendo algo tão grave na saúde, estou juntando cacos diários, em mim e em outras pessoas.
E o governo do nosso país?
Posso ser ingênua, e sei que muitos dirão que sou, mas eu queria ser acolhida pelas autoridades neste momento. Já chega o que não temos controle dentro dessa pandemia e ainda ter que lidar com ironias, desunião e ataques políticos nos discursos é de destroçar o cidadão que só quer que tudo isso passe logo. Gostaria de sentir um mínimo de segurança, o que poderia ser proporcionado por discussões baseadas em bom senso por quem comanda esse país.
Opiniões divergentes, análises diferentes, discussão de rumos, tudo isso faz parte em uma situação tão nova. Mas deboche e orientações opostas não são o que a população precisa ver neste momento. Precisamos de união e esse comportamento na cúpula da nação só espelha o que estamos vendo nas redes sociais, nos setores econômicos e até mesmo nos grupos de família no WhatsApp.
Colunista Giane Guerra (giane.guerra@rdgaucha.com.br)
Colaborou Daniel Giussani (daniel.giussani@zerohora.com.br)
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