* Jornalista e escritor
O julgamento da chapa Dilma-Temer me fez recordar um crime de quando era guri: uma viúva jovem esfaqueada dos ombros aos pés, e, logo, degolada, numa selvageria tal que as paredes da casa tingiram-se de sangue.
Na mão direita, ela empunhava uma faca – não punhal ou facão, mas uma faca de cortar batatas. Em vida, era retraída e antipática. A vizinhança desconfiava dela por ser bonita, muito bonita, e viver sozinha. E o veredicto da Justiça foi peremptório: "suicídio".
Lembrei-me disso ao acompanhar pela TV o julgamento, pelo Tribunal Superior Eleitoral, da orgia financeira da chapa Dilma-Temer na eleição de 2014 e conhecer uma inigualável rede de corrupção. Durante três dias, o ministro Herman Benjamin, relator do caso, expôs provas e documentos ou transcreveu depoimentos que, por si só, mostram o perturbador mecanismo de suborno utilizado na eleição presidencial pela Odebrecht e outras empresas. Com fatos, revelou os labirintos da podridão das campanhas políticas, fruto de investigação iniciada ainda em 2015.
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Veio à luz, então, o inferno profundo em que o poder do dinheiro soterra todos os valores éticos.
O Tribunal, no entanto, desprezou tudo isto e desatendeu às provas. Às vezes, até irritou-se com elas.
Primeiro, o presidente do TSE, ministro Gilmar Mendes, queixou-se de que "nem na ditadura se cassou tanto", numa inverdade absoluta, que Herman Benjamim contestou: "A ditadura cassou democratas e, hoje, cassam-se os que buscam terminar com a democracia". No dia seguinte, novos fatos escancararam o horror e Gilmar voltou ao absurdo: "É preciso moderar a sanha caçadora, pois coloca em jogo o valor do mandato".
Silenciou, porém, sobre o assalto em que o trio PT-PMDB-PP (após atacar a Petrobras junto à Odebrecht), comprou partidos para formar a coligação "Com a Força do Povo" e ampliar a propaganda em rádio e TV.
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A votação final do Tribunal não foi, talvez, o mais importante do julgamento, mesmo decidindo sobre a saída ou permanência do presidente da República. Desde a eclosão da Lava-Jato, antes ainda da saída de Dilma, o mais alto poder da República entrou num covil de sombras, sob a guia do trio PT-PMDB-PP. Logo, com Temer, contínuos escândalos envolveram os principais ministros e assessores mais próximos. Há pouco, tudo virou uma sombra úmida e barrenta que atinge o próprio presidente, hoje investigado pela Justiça.
Ironicamente, na tarde em que o STE decidia sobre Temer, ele respondia às 82 perguntas que a Polícia Federal fez ao presidente sobre o escabroso encontro com Wesley Batista.
Jamais em nossa História, um chefe de Estado fora inquirido pela polícia…
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Num momento em que todo país se indaga sobre o caminho a trilhar, a Justiça surge como uma espécie de boia atirada a um náufrago no mar. Assim, esperava-se que o TSE despontasse como justiceiro. Um justiceiro minucioso e duro, mas também terno e amoroso, em que a dureza espantasse a maldade e levasse à justa harmonia.
O ministro Benjamin havia advertido que "o ilícito contamina o lícito e o legal não purifica o ilegal", mostrando que as bilionárias somas despejadas pela Odebrecht e outras empresas nas campanhas eleitorais "torna os políticos reféns dos financiadores". Eis aí a grande distorção, não só da chapa Dilma-Temer, mas também a do perdedor no segundo turno de 2014, que promoveu a impugnação dos vencedores por abuso de poder.
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Os dois ministros nomeados no atual governo mostraram que, já antes do relatório sobre o caso, haviam inocentado o presidente. Um deles (advogado da chapa Dilma-Temer em 2010) chegou a bradar que o TSE podia apenas "tratar dos recursos oficiais à campanha", não dos demais. Ou seja: a Justiça não podia investigar o crime…
Assim, em meio às críticas de Gilmar Mendes à imprensa e meios de comunicação, o ministro Benjamin – como solitário combatente da verdade – exclamou ao final: "Como juiz, recuso ser coveiro de prova viva".
Por tudo isso, lembrei-me do crime da suicida degolada…
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