A mula foi a primeira grande criação humana que fez a humanidade avançar. Revolucionou a genética antes de Mendel descobrir as leis da genética. Na Antiguidade, revolucionou os transportes. As tropas de mulas, em fila e atadas pelo rabo, levaram mercadorias e malas de correio mundo afora, por precipícios e desfiladeiros, ao sol e à neve. No remoto Tibete é, ainda, locomoção segura.
Mas a mula não existe na natureza. É criação humana, cruza de jumento com égua ou de cavalo com jumenta. Como todo híbrido (animal ou planta), é estéril, não se reproduz por si só.
Só a mão humana faz nascer a obediente e incansável mula. Por isto, o narcotráfico assim denomina seus transportadores de confiança. Dos pequenos que vendem crack, maconha ou cocaína na rua aos grandes que transportam toneladas por navio ou avião em contêineres sem revista da alfândega, importados como produtos industriais.
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Agora, a mula preside o que, talvez, seja o maior dos grandes escândalos desde que a Lava-Jato mostrou o conluio corrupto entre políticos e grandes empreiteiras, grave e brutal por afetar o círculo íntimo do presidente da República. O advogado José Yunes, velho amigo de Temer, explica que foi "apenas mula" de Eliseu Padilha ao receber (quando assessor do presidente) em seu escritório, em São Paulo, um envelope, aparentemente com dinheiro da Odebrecht para o chefe da Casa Civil.
O homem-mula renunciou à assessoria de Temer, mas não evitou que o episódio se transformasse em nojento muladar. Ao contrário: o monturo pestilento mostra que há muito mais além do cheiro.
Assim, cresce o perigo de confundirmos democracia com o comportamento nefasto dos chefetes partidários. E que, de boa-fé, alguns de nós saiam à rua para reivindicar o horror e pedir a demente implantação da força para resolver "na marra" o que os políticos não resolvem com a lei.
E nos arriscamos a que pequenos Hitler sem bigode imitem pose de messias!
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Como se estivessem dedicados a semear o caos, os partidos governistas começam a imitar o PT – queixam-se da "judicialização" da política e buscam desqualificar a Lava-Jato e o juiz Sergio Moro. Um deputado do PMDB, próximo ao círculo presidencial, chamou a apuração da ladroagem de "inquérito da República de Curitiba", expressão usual dos dirigentes do PT para denegrir a investigação.
No PSDB, até Fernando Henrique Cardoso jogou-se na fogueira e sustentou que o chamado "caixa 2" (com que as empresas "socorrem" os partidos) "não é corrupção". Com isto, fez antecipada defesa de Aécio Neves (aspirante a candidato do PSDB à Presidência), apontado nas delações premiadas da Odebrecht como beneficiário de milhões de reais na eleição de 2014.
Tal qual deputados e senadores do PMDB, Fernando Henrique imita Lula da Silva. Adversários, os dois ex-presidentes agem como se uma causa comum os unisse. O cauto FHC foi até mais duro do que o boquirroto Lula e chamou de "gângsteres" os chefões da Odebrecht…
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Este estranho alinhamento do PMDB, PSDB e da base alugada com a visão do PT se solidificou após o Supremo Tribunal aceitar a tese do procurador-geral, Rodrigo Janot, de que o financiamento legal das campanhas políticas pode envolver corrupção. Assim, o senador Raupp, do PMDB de Roraima, tornou-se réu, agora, e será julgado por corrupção. Quantos virão depois?
O STF tornou norma o que era óbvio: quem doa, mesmo legalmente, doa esperando retribuição. Doação eleitoral não é ato de caridade ou benemerência, mas algo interesseiro, com olho no futuro. O fato de que o político gaste tudo na campanha ou embolse uma parte é irrelevante.
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Nem essa inquietação geral nos três grandes (PMDB, PSDB e PT) e seus satélites, porém, leva a superar as acusações e suspeitas sobre Padilha. Temer o vê como imprescindível e o inefável Renan Calheiros já inventou como amenizar: "Se Padilha sair da Casa Civil, gente do Eduardo Cunha ocupará o posto", anunciou.
O "Caranguejo" será como aqueles chefões do narcotráfico que, das prisões, dão ordens e continuam mandando?
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