A ingenuidade pode ser filha da boa-fé ou da soberba, mas é, sempre, irmã do engano. Se, de permeio, o oportunismo entra no jogo, o equívoco é devastador e equivale a cegueira.
O ardiloso engendro político-parlamentar que levou à destituição de Dilma Rousseff é um caso concreto nascido do engano. Ela acabou vítima do comportamento ingênuo no poder, derrubada pelo vice-presidente e pela estrutura do PMDB, parte ativa do governo e também artífice da corrupção. "Confiei no que não devia ter confiado", diz ela desde que Michel Temer bandeou-se para a oposição e assumiu a derrubada.
Não se trata, porém, só de um comezinho gesto pessoal de Temer. O engano de Dilma não surgiu da boa-fé, mas da soberba.
Desde a eleição presidencial de 1989, o PT posa de único ente da História. Lula era um "führer" barbudo e sua palavra, um dogma. O ex-operário e líder sindical fez jogo-duplo durante a ditadura direitista e, hoje, aparece como alcaguete da polícia política paulista, lado encoberto pela ousadia de comandar greves num tempo de medo.
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A vida política de Dilma tem outra origem. Mas, ao trocar o "socialismo moreno" de Brizola pelo petismo-lulista, incorporou o messianismo do "führer" que nunca erra e só exala verdades. No "mensalão" Lula já extravasou arrogância. Comprou deputados da direita como quem ajuda a desempregados. Posou de "enganado" que "não sabia de nada".
Na época, Francisco Dornelles, um dos líderes do PP, contou-me com espanto que Lula lhes pedia apoio em troca de ministérios: "Pensávamos na subdiretoria de uma estatal, mas ele foi além".
O soberbo "führer" tudo podia e nada temia. Como se desse esmola a um milionário, se gabava dizendo: "Nunca os bancos lucraram tanto quanto no meu governo". Delfim Netto e Eike Batista tinham, então, livre acesso ao Palácio.
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Com Dilma, o loteamento do poder expandiu-se já na eleição. O PMDB (que, antes, nem disputou a presidência) teve a vice, novos ministérios e mandou ainda mais na dadivosa Petrobras. A base alugada cresceu: mais ministros ao PP e a Petrobras transformada em central de subornos. A Igreja Universal recebeu o ministério da Pesca.
Essa aliança indestrutível governou sem pesadelos até se desnudar o conluio entre partidos e grandes empresas privadas na Petrobras. A soberba que tudo podia começou a esvaziar-se. Dilma já não podia tudo, como aprendera com Lula.
Viciados, os partidos políticos pediam "mais e mais", mas ela já pouco tinha a dar. No Congresso, mandavam os alugados, não o PT ou ela. Escorou-se ainda mais no PMDB de Temer e fez dele seu coordenador político. Mas o vice viu água na canoa e deu o lugar a Eliseu Padilha, de sua confiança e ministro da Aviação Civil. O voo foi breve.
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Nosso sistema partidário baseia-se no "toma lá, dá cá" e Dilma já esgotara a cota de doações gerada na soberba. De gênio forte e pavio curto (como a definiu seu velho amigo Frei Betto, em artigo no Globo, agora) o pouco tato deixou feridas no PMDB e na base alugada.
Exemplo gritante foi a explicação do senador Garibaldi Alves, do PMDB, para votar pelo impeachment: "Fui ministro das Comunicações e ela nunca me recebeu". Haver ou não crime de responsabilidade não o interessou.
Ao penetrar nas entranhas do sistema partidário, o PT virou partideco igualzinho aos que criticava...
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Continuo a crer na honestidade pessoal e política de Dilma, derrubada por um ardil parlamentar. Na inquirição de 12 horas no Senado, ela própria mostrou a fragilidade das acusações sobre os supostos "crimes de responsabilidade".
Mas há perguntas indispensáveis: ela não sabia dos atos do PT, PMDB e PP na Petrobras? Não saber é até mais grave, pois não devia ignorar nossa maior estatal. Por que chama de "malfeitos" o que é corrupção? Por que tratou erroneamente as denúncias das "delações premiadas" e as igualou aos delatores da época da ditadura?
Mas, já que Temer atingiu a meta de chegada com olímpica medalha de ouro do Senado, indago também: por que ele nunca se definiu sobre o colega de partido Eduardo Cunha, que personifica o engano, a desfaçatez e a corrupção?
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