É difícil renegar a paixão e o fanatismo, essas misérias disfarçadas de grandeza em que a birra manda e desmanda. Mas sempre é hora de apontar como nos corroem. A política se alimenta da condição humana e, agora, passado o hiato de sonho da Olimpíada, a etapa final do impeachment leva a duas perguntas:
1) A decisão sobre a permanência de Dilma Rousseff na presidência da República surge de um juízo minucioso e isento, guiado pela imparcialidade e decidido por juízes independentes que dissecam os fatos a partir da acusação e da defesa, em busca da verdade profunda?
2) Ou cada um dos senadores-juízes já tinha posição antes de tudo se formalizar, já julgara previamente, sem ouvir a acusação nem a defesa, sem penetrar no âmago do crime ou da culpa, guiados pela birra e nunca pela razão objetiva?
No primeiro caso, estamos frente a um julgamento concreto, que começa na isenção e conclui na independência. No segundo, haverá apenas a legalização de uma artimanha gerada pelo interesse de chegar ao poder, adaptando algo ilegítimo e perverso à Constituição e à lei.
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Ao presidir o juízo, o presidente do Supremo Tribunal, Ricardo Levandowski, lembrou que "os senadores agora são juízes", devendo deixar de lado o partidarismo "tanto quanto possível, pois afinal são seres humanos".
Sim, "afinal são seres humanos" e, como tal, lutam como feras em busca da presa. Ou não foi isto que se viu quando o senador Ronaldo Caiado (do DEM e anti-Dilma) chamou de drogado seu colega Lindbergh Farias (do PT e pró Dilma) que, por sua vez, o chamou de sócio, em Goiás, do ex-senador Demóstenes Torres, cassado por ligações com o narcotráfico?
A atual política partidária traiu-se a si mesma e à própria democracia. Cada vez mais, se transforma em disputa por notoriedade para chegar ao poder e, lá, virar um quisto que incha e incha. Ao continuar, se apossa do organismo e o desorganiza e atrofia, como a Lava-Jato mostrou...
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Seja qual for o resultado final, o processo que busca a queda de Dilma é diferente dos demais da História recente. Acompanhei todos eles, de perto. Getúlio Vargas em 1954, João Goulart em 1964 e Fernando Collor em 1992 caíram em função do que fizeram, de bem ou de mal.
Naqueles tempos de atraso, a direita conservadora odiava Getúlio por ter iniciado a industrialização e assegurado direitos aos trabalhadores. Daí nasce tudo o que desemboca no suicídio, quando ele atira seu cadáver contra os inimigos e impede o "golpe constitucional", já armado.
Jango caiu pelos acertos, não pelos erros do governo, numa conspiração armada e financiada por Washington em plena paranoia anticomunista da Guerra Fria. Collor caiu por agir como "rei" e oficializar a corrupção em proveito próprio.
Agora, nas "pedaladas fiscais", Dilma é acusada por copiar o que todos os antecessores fizeram – até Itamar Franco, de lisura absoluta.
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Também com os vice-presidentes antes levados ao poder, tudo difere de agora.
Café Filho ocupou o lugar de Getúlio retraído, até envergonhado. João Goulart estava na China e foi surpreendido pela renúncia de Jânio Quadros. José Sarney não queria assumir no lugar de Tancredo Neves e foi convencido, quase à força, pelo comandante do Exército. Itamar continuou fiel a Collor, mesmo agindo diferente.
Ao contrário, Temer foi o principal impulsor e articulador do "impeachment", após participar ativamente do governo. Indicou ministros, assinou "pedaladas" em substituições eventuais de Dilma e dela foi, até, coordenador político em 2015, antes de o PMDB (que ele presidia) "desembarcar do governo" e jogar-se nas ondas do "impeachment".
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A maré atual pró impeachment, porém, não se nutre só do medíocre governo de Dilma-Temer com a base alugada. Surgiu da antipatia gerada pelo PT, que se viu sempre acima da História, como se o povo nascesse da bolsa-família de Lula.
Sim, pois na corrupção na Petrobras (e noutras que a Lava-Jato desvendou) também o PMDB de Temer foi voraz articulador e beneficiário, junto com o PP, ambos hoje unidos contra Dilma.
Corajosa, ela aceitou ser interrogada pelos juízes-senadores. Se tiver grandeza, talvez marque a vitória dos vencidos.
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