A melhor e mais profunda radiografia da nossa Câmara de Deputados apareceu domingo passado na votação do pedido de "impeachment" presidencial. Pela primeira vez, cada um de "Suas Excelências e nobres deputados" pôde ser espontâneo e expressar pela televisão o que é e também o que pensa. E aí apareceu a realidade escondida pelos ritos do Parlamento.
- Parecia o programa da Xuxa -, disse-me minha cozinheira quando lhe indaguei sobre a transmissão da sessão que tinha ocupado o domingo que ela e a família reservam para o Faustão.
Nenhuma análise sociológica ou política definiria tão profundamente aquele torneio de sandices quanto a síntese da minha cozinheira. Sim, pois mais revelador que os 367 votos a favor do "impeachment" foram o comportamento e as razões invocadas pela maioria dos deputados.
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Como esquecer? Alguns portavam cartazes ou bandeiras, como propagandistas de rua. Outros dedicavam o voto abanando para os filhos ou mandando beijinhos à família, com o nome de todos, até dos que estão por nascer. Um voltou ao microfone, após votar, pois se esquecera do genro. Houve o que levou ao plenário o filho pequeno para que proclamasse o voto no "sim"...
E de permeio, o "bloco evangélico" unido pelo "sim" em nome "de Deus e dos cristãos". O mais notório dos autoproclamados "religiosos", Eduardo Cunha, do PMDB, presidente da Câmara e guia do "impeachment" foi até austero, talvez por ser réu no Supremo: "Que Deus tenha misericórdia da Nação", disse ao votar, como se pedisse compaixão pela propina que recebeu no assalto à Petrobras.
Esse invocar o nome de Deus em vão e a granel desrespeita todas as religiões, mas em nosso Parlamento virou algo corriqueiro, como bengala a guiar o cego.
Houve ainda o absurdo explícito: uma deputada mineira votou "sim" para "mudar" e apontou o marido, prefeito de Montes Claros, como exemplo a seguir. No dia seguinte, ele era preso pela Polícia Federal por fraudar milhões na prefeitura-modelo...
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Só faltou que o "sim" de Paulo Maluf fosse "contra a corrupção"...
O mais grotesco, porém, ficou com o carioca Jair Bolsonaro. Aos gritos, dedicou o voto a um torturador dos tempos da ditadura direitista que a Justiça responsabilizou pelo assassinato de, no mínimo, 52 presos políticos em São Paulo. E ainda desenterrou a Guerra Fria e votou "contra o comunismo" vociferando: "... perderam em 1964 e vão perder de novo".
Em tudo isto, nenhuma alusão às razões invocadas para o "impeachment" da presidente. Esta alienação absoluta não é perigosa apenas por transformar o Parlamento em circo. Se fosse só isto, o palhaço-deputado Tiririca (que se limitou a dar o sim") faria as listas de candidatos e tudo se resolveria em gargalhadas. Com o riso suplantaríamos a inação.
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O problema fatal é que essa alienação e desvario, que nos afastam da realidade, ocupam o espaço reservado para o debate e o diálogo em torno da Nação. Já que não se dialoga nem se debate, já que os beijinhos e as dedicatórias familiares ocupam o espaço político, só resta o confronto. Mas não o confronto de ideias ou projetos, e sim o confronto pelo nada, como o do futebol, em que o adversário vira inimigo.
E "o inimigo" se esmaga, para não nos destruir... Do vazio deste nada desponta a violência e o ódio a esmo que cada dia se tornam mais comuns numa sociedade a caminho da intolerância cega.
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O que dizer do vice-presidente Temer e seu partido - até ontem integrantes do governo - agora em luta aberta contra a presidente Dilma?
A inoperância do governo não surgiu de um ato mágico da presidente. É, isto sim, fruto do "casamento arranjado" do PT com o PMDB, tendo o PP, Partido Progressista, na lua de mel. Desse triângulo amoroso nasceu o ministério medíocre que a chantagem dos politiqueiros vulgarizou ainda mais.
Por isto, a sessão em que os deputados trataram do "impeachment" não foi só o "show da Xuxa". Foi maior do que o Faustão e até o substitui no domingão...
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