Sai para comprar pão. Na volta, passei pela farmácia. Na porta, vi um rapaz maltrapilho. Era uma dessas figuras que as pessoas atravessam a rua para não chegar perto: 30 e poucos anos, menos talvez, pele e osso, cabelo desgrenhado, calça amarrada à cintura com barbante, calçava no pé direito um tênis encardido, no esquerdo uma havaiana. Devia ser um dos usuários de crack que se instalaram na vizinhança do meu prédio, ao serem expulsos das imediações da esquina da Rua Helvetia, com a Cleveland e da Praça Princesa Izabel, região em que viveram durante anos.
— O senhor poderia me comprar uma coisa que estou precisando muito? — Apontou para a prateleira mais próxima da entrada: — É esse desodorante. Está a R$ 21 na promoção.
Na saída, quando lhe entreguei o frasco, sorriu e repetiu três vezes: "Deu lhe abençoe o senhor". Para evitar o quarto Deus abençoe, respondi que não precisava agradecer.
— Preciso sim. Pedi para muita gente, ninguém quis comprar. Quem passa me dá pão, às vezes uma quentinha, roupa usada e até dinheiro, mas desodorante nem adiante pedir. Eles acham que é luxo, não entendem que é para a minha dignidade de pessoa humana.
Os presídios brasileiros são incubadoras, escolas primárias e universidades do crime.
Nas cadeias, vejo situações semelhantes. Todos imaginam que naquelas celas apinhadas os presidiários vivem na promiscuidade sem o menor cuidado de higiene. Ledo engano: nos presídios em que atendo uma vez por semana há 34 anos, nunca soube de um homem ou mulher que ficasse um dia sequer sem banho.
No Centro de Detenção Provisória em que estou agora, as celas medem 3 por 4 metros. A frente é fechada pelas grades de ferro, única entrada de ar. Na parede do lado esquerdo, estão alinhados dois triliches de concreto; na do lado oposto há mais um, no fundo de tudo o vaso sanitário e o chuveiro de água fria. Como em cada cama dormem dois homens com os corpos em posição invertida, nos três triliches cabem 18 no conforto do colchão de espuma. O problema é que as celas albergam ao redor de 30 detentos, a disputar o mesmo chuveiro de água fria e o vaso sanitário que atende pelo nome de "boi". Aos que não encontram espaço nas camas, resta a alternativa dormir na "praia", nome carinhoso dado ao chão duro.
Nesse ambiente inóspito, passam na tranca 18 horas, dia após dia, faça frio ou o calor sufocante do verão paulistano. No entanto, acredite prezado leitor e você também estimada leitora: duvido que qualquer de vocês tome tantos banhos quanto eles. O número médio é de quatro por dia, no mínimo três. Muito raro atender um detento que tome apenas um ou dois. Os inimigos da água e os recalcitrantes são prontamente convencidos pelos companheiros com palavras delicadas, digamos assim.
Depois dos acontecimentos de janeiro, foram presas em Brasília centenas de pessoas da classe média, em sua maioria. Ficaram revoltadas com a recepção, reclamaram da falta de conforto das instalações, da qualidade da comida, das filas de espera à porta dos banheiros, da apreensão dos celulares. Um deles se queixou da injustiça que foi tê-lo aprisionado contra a vontade.
Não lhes tiro a razão, entretanto. Nosso sistema penitenciário não foi construído para receber criminosos brancos, mas para punir os negros de mau comportamento. Nos tempos do Império, as prisões em São Paulo eram instaladas no térreo do sobrado em que funcionava a Câmara da cidade. As grades das celas davam para a rua, para que os presidiários pudessem mendigar aos passantes, a comida que o Estado lhes negava. As únicas celas localizadas na privacidade do espaço interno eram as dos condenados à morte.
Fiéis às piores tradições como sempre fomos, o sistema penitenciário de hoje preserva os mesmos valores. Nossos presídios foram criados para castigar os condenados. Tentar recuperá-los não é considerado papel do Estado.
No CDP em que atendo, não há médicos contratados, nas celas superlotadas vejo os mesmos problemas de saúde que encontrei ao chegar no Carandiru há mais de 30 anos: sarna epidêmica, furúnculos pelo corpo, asma, tuberculose e infeções respiratórias.
Os presídios brasileiros são incubadoras, escolas primárias e universidades do crime. Neles, reunimos as condições ideais para o florescimento do crime organizado, poder paralelo que impõe suas leis com mão de ferro, para milhões de brasileiros nas comunidades mais desprotegidas.