No início da pandemia, surgiram aqueles testes de farmácia para detectar a presença de anticorpos numa gota de sangue. Muita gente correu para fazer.
Seria de grande utilidade um exame que detectasse anticorpos contra o vírus, para identificar quem já foi infectado e se está protegido contra nova infecção.
Desde os primeiros casos de covid-19, foram lançados no comércio vários testes com essa finalidade. Naquela época sem vacinas, a identificação dos que estariam imunes lhes daria liberdade de movimentação, sem correr risco. O mercado foi inundado de preparações de procedência duvidosa, distribuídas pelas farmácias do país.
Não está definida a concentração de anticorpos necessária para garantir proteção, dado fundamental para revacinarmos os ainda vulneráveis.
Os resultados desses testes rápidos criaram mais dúvidas do que respostas, especialmente porque não foi possível definir quais seriam os anticorpos realmente protetores, nem por quanto tempo ofereceriam proteção.
Com o advento das vacinas, entretanto, renasceu o interesse pela detecção de anticorpos no sangue das pessoas imunizadas. Seria possível documentar os efeitos do estímulo imunológico, por meio da dosagem de anticorpos induzidos por ele? Haveria uma forma de relacionar a quantidade de anticorpos presentes no sangue com os níveis de proteção, de modo a revacinar aqueles em que as concentrações não fossem consideradas ideais?
Depois de analisar os dados obtidos em vários estudos, o Food and Drug Administration (FDA), dos Estados Unidos, concluiu que os testes não apresentavam sensibilidade nem especificidade suficiente para indicá-los na avaliação da imunidade induzida pelas vacinas.
Apesar da recomendação do órgão oficial, muitos médicos continuam solicitando a dosagem de anticorpos pós-vacinação, para estimar o grau de imunidade e a necessidade de doses de reforço.
A revista JAMA, publicada pela American Medical Association, traz uma discussão sobre esse tema. Cita o caso de uma empresa da Flórida que anuncia diretamente para os consumidores um teste vendido a U$ 170 que, segundo apregoam, "identifica corretamente o número de anticorpos neutralizantes que você tem, com 100% de especificidade, de modo que em 24/48 horas você saberá se o seu sistema imune ainda protege contra a covid".
Ouvida pela revista, Elitza Theel, diretora do Laboratório de Sorologia das Doenças Infecciosas, da prestigiosa Mayo Clinic, foi clara: "Sei que muitas pessoas fazem o teste apenas para saber se reagiram à vacina ou se estão imunizadas, apesar dos melhores esforços que temos feito para educá-las".
Os testes sorológicos hoje disponíveis são mais específicos e sensíveis do que os anteriores, mas não está comprovado que sejam capazes de avaliar o grau de proteção. Mesmo porque muitos detectam apenas a presença de anticorpos induzidos pela infecção natural. Portanto, pessoas que não foram infectadas podem apresentar resultado negativo depois de receber a vacina, ainda que tenham imunidade protetora. Outras podem adquirir a infecção apesar da presença de anticorpos neutralizantes.
Além dessa inconsistência, não está definida a concentração de anticorpos necessária para garantir proteção, dado fundamental para revacinarmos os ainda vulneráveis.
Outro problema é o de que os anticorpos atingem o máximo de concentração dois ou três meses depois da infecção natural ou da vacinação, período depois do qual seus níveis sanguíneos caem. No entanto, permanecem no organismo células B responsáveis pela memória de longa duração, capazes de produzi-los rapidamente em caso de novo contato com o vírus.
Finalmente, a produção de anticorpos — tarefa a cargo dos linfócitos B — não é o único recurso do sistema imunológico para combater o coronavírus, parte importante da resposta é executada pelos linfócitos T, responsáveis pela imunidade celular, função que não é medida nos testes para detectar anticorpos.
Em resumo: embora os testes disponíveis permitam detectar a presença de anticorpos induzidos pela infecção natural ou pela vacinação, esse dado é de pouca valia, porque: 1) não sabemos se eles são de fato capazes de neutralizar o vírus; 2) não conhecemos a concentração necessária para assegurar proteção; 3) não permitem avaliar a eficácia da imunidade celular; 4) não está demonstrado se a redução dos níveis de anticorpos depois da vacinação guarda relação direta com o aparecimento de doença grave.
Os manuais ensinam que o médico não deve solicitar exames sem saber para que eles servem.