Quanto mais velho fico, menos medicamentos prescrevo. Xaropes, vitaminas, antibióticos para qualquer dor de garganta causam mais efeitos indesejáveis do que benefícios.
Quando se trata de receitar aqueles de uso diário pelo resto da vida, então, penso 10 vezes. É o caso dos anti-hipertensivos para pessoas com pressões máximas ao redor de 14 ou 15 cm ou mínimas entre 9 e 10 cm, valores que podem voltar à normalidade em resposta à perda de peso, ajustes na dieta e aumento da atividade física.
Veja o caso do diabetes, prezada leitora, epidemia mundial que afeta pelo menos 14 milhões de brasileiros, segundo a Associação Brasileira de Diabetes, que adota os seguintes critérios para o diagnóstico da doença: glicemia de jejum maior ou igual a 126 mg/dL ou hemoglobina glicada maior ou igual a 6,5% ou glicemia acima de 200 a qualquer hora do dia, acompanhada de sintomas.
Glicemia de jejum entre 100 e 125 ou hemoglobina glicada entre 5,7 e 6,5% ficariam numa situação intermediária, classificada como pré-diabetes pela American Diabetes Association (ADA), a partir de 2009, – nomenclatura não aceita por várias sociedades médicas e pela Organização Mundial da Saúde.
O termo pré-diabetes sempre me incomodou. Dá a impressão de que, ao atingir essa faixa de glicemia, a pessoa já não é saudável, está condenada a desenvolver a doença.
Não é o que as evidências demostram, no entanto. Segundo o Center For Diseases Control, dos Estados Unidos, menos de 2% desses casos evoluem para diabetes, anualmente; portanto, menos de 20% nos 10 anos seguintes. Outros estudos chegaram a números ainda menores.
Com o título “A guerra contra o pré-diabetes pode ser um boom para as companhias farmacêuticas – mas é boa medicina?”, Charles PillerMar faz uma discussão sobre o tema, na revista Science. A estimativa é de que a adoção do critério atual para definir pré-diabetes coloca nessa condição 70 milhões a 80 milhões de americanos e perto de 1 bilhão de adultos ao redor do mundo.
Diante desses números, a recomendação da ADA é enfática: “O público precisa saber que hoje, nos Estados Unidos, uma em cada três pessoas tem algum tipo de anormalidade na glicemia”.
Segundo a ADA, como os programas dirigidos à perda de peso e mudanças no estilo de vida apresentam resultados medíocres, investir neles é “jogar dinheiro no fogo”. A alternativa seria adotar o tratamento medicamentoso.
Dessa maneira, foi armado o cenário para considerar doentes pessoas assintomáticas que poderiam assim permanecer por décadas, eventualmente pela vida inteira.
Sempre atentas às oportunidades mercadológicas, a indústria farmacêutica está desenvolvendo pelo menos 10 classes de drogas para tratamento do pré-diabetes, algumas das quais já são prescritas, mesmo sem a aprovação formal das agências reguladoras.
No artigo da Science, Charles PillerMar discute a existência de um lobby que procura influenciar a American Diabetes Association por meio de doações vultosas, bem como os médicos formadores de opinião e aqueles que participam da elaboração dos consensos da especialidade.
Empresas que desenvolvem equipamentos para a medição da glicemia investem em monitores eletrônicos ligados ao celular, mais cômodos, precisos e bem mais caros do que as tradicionais picadas na ponta dos dedos. Já há especialistas que consideram o monitoramento diário da glicemia, indicado para todos os adultos.
Companhias que produzem alimentos dietéticos, suplementos nutricionais e adoçantes artificiais pressionam pela aprovação de seus produtos e investem na publicidade dirigida a esse nicho do mercado.
O rótulo pré-diabetes torna pacientes pessoas sem nenhuma doença, que enfrentarão a ansiedade e os custos de acompanhamento médico, exames laboratoriais, monitores de glicemia e suplementos dietéticos que apregoam resultados jamais comprovados.
A respeitadíssima Cochrane Library, responsável por extensas revisões da literatura médica, conclui: “Os médicos devem ser cuidadosos ao tratar pré-diabetes, porque não temos certeza se trará mais benefícios do que prejuízos”.
Se considerarmos doentes os que apresentam glicemia, pressão arterial ou colesterol pouco acima dos limites da normalidade, hipotireoidismo subclínico e todos os que se queixarem de estresse, ansiedade, tristeza, insônia ou excesso de peso, vai ficar difícil viver sem tomar remédio.