Uma das ressignificações mais justas que a Humanidade poderia sacramentar, do ponto de vista histórico, era dar a Pelé a dimensão do criador. Assim como Deus criou o mundo em 7 dias, Edson Arantes do Nascimento inventou o futebol. Tecnicamente, foram os ingleses, eu sei. Mas eles bolaram as regras. O futebol em si, tal qual existe hoje, capaz de mobilizar bilhões de pessoas nas ruas e na frente da TV em uma Copa do Mundo, como se viu agora no distante Catar, essa obra inverossímil deste gênio que nos deixou, vencido pelo câncer aos 82 anos.
Se você quiser ir para os números, medida nem sempre definitiva e que é só uma parte da carreira de Pelé, tudo bem. Sua condição de número 1 eterno se dá também através do império do resultado. Ninguém mais vencerá três Copas do Mundo, a primeira aos 17 anos e fazendo gol na semifinal e na final. Somando o Santos, são cinco Mundiais. Ninguém mais fará 1,2 mil gols ou ganhará da Fifa o prêmio de Atleta do Século — não o melhor deste ou do ano passado: do século. Ninguém mais eternizará um número ao ponto de transformá-lo em sinônimo de craque.
Maradona, Messi e Mbappe usam a 10 por uma única razão: Pelé. Jamais podemos perder a dimensão deste homem negro e pobre, que venceu na vida superando todos os obstáculos possíveis para um homem negro e pobre de seu tempo, inclusive críticas injustas de que sua voz contra a ditadura militar tinha de ser mais forte. Pelé veio de origem muito humilde. Não tinha condições de processar e entender o que de fato ocorria no Brasil nos anos de Chumbo. Era um homem bom. Morre como a pessoa mais conhecida do planeta em todos os tempos, ativo em causas sociais e contra o racismo. É este legado que, a partir de agora, é missão de todo cidadão brasileiro conhecer, aprender e passar adiante. Eu mesmo, aos 54 anos, não vi o auge de Pelé.
E nossos filhos? Como fazer para que defendam Pelé e seu legado inacreditável? Minha memória mais viva, cuja lembrança te faz sentir de novo, foi aos sete anos, quando vi no Jornal Nacional, em 1976, aquele gol de bicicleta pelo Cosmos. Aliás, mais essa: o futebol, nos EUA, nasce com sua ida para para lá. Uma bicicleta perfeita, no alto, pedalada no ar de sincronia mágica, pegando a bola no ponto certo, vinda de um escanteio, estufando a rede. Anos depois, a profissão e a paixão pelo futebol me puseram em contato com tudo o que ele fez pelo Brasil. A Seleção Brasileira, apesar dos fracassos recentes em Copas, é venerada no mundo todo. Vi isso no Catar. Creiam. Obra dele, Pelé.
Uma das supostas dúvidas sobre a real condição única de Pelé está na sua época. Os mais jovens têm certa resistência, ao confrontá-lo com Messi, Cristiano Ronaldo ou Mbappé. Dizem que lá atrás tudo era lento e sem força, o que facilitava a vida de Pelé. É compreensível. Eles nasceram no reino do vídeo, das redes sociais. Uma parte da carreira de Pelé teve registros incipientes. Hoje, uma boa edição com cortes rápidos no Instagram transforma Janderson em driblador e Alemão em velocista.
Outro ponto, ainda mais importante, é o pioneirismo. A primazia de gols, dribles, jogadas, cobranças de falta com os dois pés, lançamentos longos, tabelas curtíssimas sem espaço — algumas usando as pernas do próprio marcador. Neymar, Messi, CR7 e até o próprio Maradona já pegaram tudo mastigadinho. Hoje tem tutorial em vídeo aos montes sobre como bater na bola e fazer todo tipo de drible ou jogada. Aulas e métodos teóricos. Tudo disponível no celular.
Pelé não teve nada disso. Não teve atalhos. Era tudo no improviso, na intuição, sem copiar de ninguém. Sem ver no YouTube.
No tempo de Pelé também apanhava mais. Veja a final da Libertadores contra o Boca, na Bombonera, vencida pelo Santos em 1963. Aquilo foi uma chacina. Carrinho com os dois pés na coxa. Soco na cara. É só ver as imagens de "Pelé Eterno". Ele não se intimidou. Devolveu na bola com alguns justos revides, que um homem tem o direito de se defender quando atacado daquele jeito. Só músculos de aço resistiriam anos assim. Quantos gols faria se houvesse VAR? Uns dois mil.
No tempo de Pelé, as lesões demoravam a curar porque a medicina esportiva não era tão evoluída. Problema no menisco durava um ano. Hoje, 15 dias. A bola era de chumbo. Os gramados, piores. A camiseta suada pesava um quilo. A chuteira, por aí. Agora tudo é leve. Os jogadores são tratados a pão de ló. A ciência do esporte os potencializa. Com Pelé era polichinelo, esparadrapo, abdominal, infiltração, corrida e campo. Gostaria de abraçar quem fez a primeira edição de vídeos, agora viralizados, mostrando dribles, golaços e jogadas mágicas de Ronaldinho, Messi, CR7, Zidane, Iniesta, Cruyff. Neles, há Pelé fazendo TODOS os lances do mesmo jeito — só que meio século antes.
Como era possível? Como ele conseguia criar tantas jogadas? De onde as tirava?
Quando mostrei o primeiro desses vídeos ao meu filho, então com 15 para 16 anos, há mais de ano, na hora vi que o olhar dele mudou. Eu já tinha falado, explicado e respondido muitas perguntas sobre Pelé, mas sempre percebia certa desconfiança. O Pedro acreditava em mim porque um filho, ao menos nessa idade, confia no pai — ainda mais um que trabalha com esporte. Mas após aquele vídeo, ele me encarou com o mais lindo dos olhares: o da descoberta. E disse:
— Ele era f*** mesmo.
Eis nossa missão como brasileiros. Temos de seguir descobrindo Pelé. Para nossos filhos, netos, bisnetos e tataranetos nunca perderem a dimensão de quem inventou de verdade o futebol, essa obra prima da criação.
Viva Pelé.
Eternamente.