Pelé estava na meia-lua da área, olhando para trás. Seus companheiros, todos parados, fitavam-no do círculo central. Ele virou-se e deu três passos caminhando em direção à bola, que repousava sobre a marca que indica exatos 9m15cm da linha. Acelerou o ritmo e pisou mais duas vezes o chão. Virou o pé direito e direcionou sua melhor amiga para o canto baixo, próximo à trave esquerda.
Naquele segundo, a Terra parou de girar. As mais de 65 mil pessoas presentes no Maracanã arregalaram os olhos, naquele silêncio que precede o estouro. Eram 23h23min de 19 de fevereiro de 1969. Pela milésima vez em 13 anos de carreira, o camisa 10 marcava um gol.
Todo mundo já viu esse lance. Aos 33 minutos do segundo tempo de um Vasco x Santos pelo torneio Roberto Gomes Pedrosa (que depois seria atualizado para Brasileirão), Pelé foi derrubado na área. Pênalti. Mesmo sendo no Rio, com óbvia maioria a favor do Vasco, a torcida primeiro incentivou e depois aplaudiu e comemorou o feito. Era a primeira vez que algum jogador chegava ao milésimo gol.
Mas para que a história fosse assim, é preciso contar o que ocorreu no jogo anterior, e também no primeiro tempo desta partida no Maracanã. Voltemos uns dias, então. Mais precisamente, para 16 de novembro de 1969.
Era um domingo de calor em Salvador. Na Fonte Nova, mais de 35 mil torcedores se apinhavam nas arquibancadas para ver o milésimo gol de Pelé. Aos 17 minutos do primeiro tempo, a cena se materializou. O camisa 10 avançou, tabelou com Coutinho e recebeu na frente. Gingou, deixou dois zagueiros para trás. O goleiro Jurandir saiu apavorado. Pelé o deixou deitado. Com a trave descoberta, deu um toquinho para celebrar um gol que, além de histórico, seria lindo. Quando a bola se preparava para cruzar a linha, o zagueiro Nildon deu um carrinho e salvou. Os torcedores se dividiram entre comemorar a defesa e lamentar que a História não foi escrita. A ironia é que no final do jogo, o Santos fez um gol, com Jair, pegando o rebote de um chute de Pelé que acertou a trave.
Ficou tudo para o Maracanã. Foram 78 minutos de espera até que a magia acontecesse. Mas poderia ter sido antes. E também com um golaço. No primeiro tempo, Pelé recebeu a bola na entrada da área. Marcado por três vascaínos, ele percebe um espaço. É suficiente para a genialidade. O goleiro está levemente adiantado. Pelé bate com o lado externo do pé direito. A bola sobe e vai encobrir o camisa 1 vascaíno. Mas Andrada consegue dar um passo para o lado, esticar o braço e colocar para escanteio.
Ficou para o pênalti mesmo. Dizem que foi até melhor. Assim, o mundo todo parou para ver e ouvir a cobrança. Os companheiros de Santos ficaram no meio do campo. Azar se desse rebote. Os fotógrafos correram para trás da trave. Os repórteres se aglomeraram. Quando a bola entrou, Pelé correu para a rede e logo foi cercado.
— Pelo amor de Deus, olha o Natal das crianças. Olha Natal das pessoas pobres, dos velhinhos cegos. Tantas instituições de caridade por aí. Pelo amor de Deus, vamos pensar nessas pessoas. Não vamos pensar só na festa. Ouçam o que eu estou falando. É um apelo, pelo amor de Deus. Muito obrigado — disse Pelé, aos prantos.
Os santistas comemoraram, os vascaínos aplaudiram, os repórteres se orgulharam dos registros, os fotógrafos eternizaram as imagens. O Maracanã estava feliz. Quer dizer, quase todo o Maracanã.
Enquanto Pelé era cercado, abraçado, agarrado, entrevistado, fotografado, uns metros adiante, Andrada esmurrava o chão. Ele quase tinha defendido a cobrança. Fez de tudo para não entrar na história por isso. Famoso em seu país, destaque do Rosario Central, Edgardo "El Gato" Andrada sabia que aquele gol lhe daria um novo sobrenome. Desde aquele dia até sua morte, quase 50 anos depois, seria para sempre "Andrada, aquele que levou o milésimo gol de Pelé".
Quantos gols fez o Rei?
Depois daquele, Pelé marcou outros 281 gols, totalizando, óbvio, 1281. O primeiro foi em 7 de setembro de 1956, contra o Corinthians de Santo André. O último, em 1977, em sua despedida. Ele fez um dos gols do Cosmos contra o Santos, em uma partida em que disputou um tempo em cada equipe.
Revisionistas, especialmente europeus, resolveram contestar os números. Eles alegam que nem todos os jogos foram oficiais. Retirando as partidas amistosas, o Rei marcou 767 gols. O problema de tirar essas partidas é que ficam de fora, justamente, os europeus. Só contra a Inter de Milão foram 10, por exemplo.