Observando o mimimi contra a braçadeira de capitão a Neymar, fico sem entender como um país de gente tão virtuosa tornou-se tão corrupto. Os críticos da iniciativa do técnico da Seleção Brasileira têm sede de justiça e lutam por um Brasil honesto, julgando-o em um tribunal ético rigoroso, que condena à forca quem pinta o cabelo e sentencia a pedradas conforme o número de rolamentos após cada falta. Sei. Tivesse o Brasil trazido o caneco da Rússia, a régua moral talvez sofresse variações.
A cirurgia, por exemplo. O fato de Neymar voltar de fratura no dedo do pé em um esporte jogado com os pés o tornaria um mártir. Mas o Brasil perdeu, então esqueçamos esta parte e sejamos deterministas: ele não foi protagonista por falta de personalidade, mesmo campeão olímpico cobrando o último pênalti na Rio 2016. Mesmo tendo desfalcado a Seleção, na Copa de 2014, só após uma joelhada pelas costas que quase lhe quebrou a coluna. Ou foi simulação, também?
Neymar não estava no 7 a 1 por ter escapado da morte, como disseram os médicos. Apareceu na Granja Comary no dia seguinte para prestar solidariedade aos companheiros, apesar das dores e sem andar direito. Os jornais trataram suas declarações como "entrevista de capitão". Um capitão como Thiago Silva não havia sido por ter chorado. Se ganha e chora, é um líder firme de coração gigante. Se chora e perde, é um reles bunda-mole. O juízo moral está tão somente no resultado.
Faz bem pensar que capitães de times de futebol são poços de virtude. Sábios capazes de ensinar o certo e o errado, de cajado na mão. Estadistas que deviam concorrer a presidente da ONU para unir judeus e palestinos. Mas não é assim, por mais que acreditemos em estórias da carochinha. Capitães têm ascendência sobre os outros pelo que fazem dentro e fora de campo em benefício do grupo, graças a uma liderança natural ou técnica. Não precisa ser um Nelson Mandela. A Seleção não tem um líder natural, como era Dunga.
Já disse o que me incomoda em Neymar, ainda que acredite não ser de propósito, e sim fruto de um praga contemporânea: a cultura da ostentação. Cada gesto ou atitude sua é patrocinado por uma marca. Lembro de uma festa na piscina (pool party), moda entre os famosos, com vídeos de banhos de champanhe caríssimas postados no Instagram. Nada errado, que fique claro. O dinheiro é dele, conquistado com o suor do seu trabalho. Mas as crianças o copiam. É esse o recado? Fique rico e jogue o seu poder na cara dos outros, a maioria milhões de pobres, que nunca saberão o que é piscina e champanhe?
Os relatos internos da Seleção são os melhores sobre Neymar. Ele não reclama. Obedece às ordens do técnico. Trabalha em equipe. Não faz corpo mole. Jamais se atrasou. Quando se lesiona, volta rápido por cumprir os protocolos de recuperação à risca. Nunca se apresentou gordo, como Ronaldo Fenômeno. Este, aliás, casou-se em um castelo, jogava e fumava, arrumou confusão com travestis e cortou o cabelo de Cascão na final de 2002. Ninguém fala de nada disso porque o Brasil foi campeão.
Tite está ao lado de seu craque no momento em que o mundo faz bullying com ele. Nos amistosos da semana, americanos e salvadorenhos bateram por trás com deslealdade. Quando Neymar não caía, falavam com o árbitro mencionando a Copa, para provocá-lo. Quando o choque o derrubava, faziam o gesto da simulação com uma mão — e guardavam o revólver com a outra. Fosse Neymar e não Griezmann na cena de cinema que resultou no primeiro gol francês contra a Croácia, a pena seria a guilhotina. Menos, gente. Menos.
A Seleção passa por renovação, e Neymar é o ídolo dessa molecada. Ao dar-lhe a braçadeira, Tite o coloca na obrigação de controlar os nervos e dar o exemplo. Também ficará mais difícil para os árbitros que buscam um minuto de fama punindo uma reclamação pós-falta e ignorando o anônimo que a cometeu. Ao levar pancada por apoiá-lo no pior momento da carreira, Tite está fazendo de seu craque um devedor. Dar-lhe a braçadeira não é passar a mão na sua cabeça. Pode até não surtir o efeito desejado, mas é uma tacada para melhorar a referência técnica da Seleção. Só não vê quem não quer.