Na esfera desportiva, portanto excluindo a descoberta de mais propinodutos abastecidos por empreiteiros para enriquecer políticos, numa roubalheira perturbadoramente multipartidária e sem preferências ideológicas, o ano bem poderia ficar na lembrança apenas das imagens inesquecíveis dos Jogos Olímpicos do Rio de Janeiro.
Parecia que ia dar tudo errado, mas tudo funcionou ao ponto de especialistas posicionarem a Rio-2016 um patamar acima de Londres-2012. Só que o fim de ano nos reservou a tragédia inaceitável da Chapecoense. A tristeza dos familiares das 71 vítimas, o carinho monumental do povo colombiano, as homenagens espontâneas que se seguiram mundo afora, tudo nos levou a pensar sobre o que realmente importa.
Leia mais:
Cirurgia no tornozelo de Follmann é adiada devido a tratamento
Guilherme Biteco faz homenagem em foto com Alan Ruschel: "Abraço que queria dar no meu irmão"
Chapecoense faz revista contando a tragédia como um "Era uma vez" para crianças
Tenho uma tese singela. Matéria de convicção, como dizem juízes, desembargadores e ministros do STF. Não que eu me compare a eles. Faltam-me talento, saber e oratória. E algumas vantagens, com auxílio-moradia e salários acima do teto público em alguns casos. O fato é que acredito no seguinte: as melhores ideias são as mais simples. Assim como as melhores lições são as que têm a marca da singeleza.
Os últimos dias nos deram duas aulas de como o simples não é o oposto do raso. A primeira aula veio do lateral-esquerdo Alan Ruschel, um dos quatro sobreviventes do voo de Medellín, ao lado do goleiro Follmann, do zagueiro Neto e do jornalista Rafael Henzel. Emprestado pelo Inter ao clube catarinense, ele foi a estrela do Lance de Craque, o jogo beneficente de D’Alessandro. Deu o pontapé inicial e recebeu uma homenagem comovente. Antes, em entrevista à repórter Vanessa Kanemberg, contou o que lembra do acidente e da sensação de ser eleito pelo destino para continuar quando quase todos morreram. Lá pelas tantas, ele diz o seguinte:
“A gente reclama de tanta coisa. Eu mesmo, reclamava. De chegar em casa cansado, assim ou assado. Esse tipo de coisa mínima. Vou procurar viver mais a minha vida, porque não sei o que vai acontecer daqui a 15 minutos. Eu ia fazer a última viagem do ano, voltar e sair de férias. Simplesmente hoje eu estou aqui porque caiu o avião. Tenho de aproveitar mais a vida. Aproveitá-la bem. E fazer o bem, que é o que o mundo precisa: de pessoas melhores. O que aconteceu poderia ter sido evitado, então é fazer o bem, algo que não faz mal a ninguém.”
Alan Ruschel entendeu, com toda a razão, que sobreviveu porque muitas pessoas anônimas o ajudaram, desde o socorro na selva até as cirurgias no hospital. Sem isso, não haveria milagre. Pessoas anônimas como tantas com as quais ele cruza diariamente. Assim, além de celebrar cada minuto vivo, quer ser uma pessoa melhor com os outros. Fazer o bem melhora a gente. E, para fazer o bem, não precisa ir até Aleppo, na Síria, recrutado pela ONU.
Faça o teste no dia a dia, segurando a porta do elevador ou cedendo o lugar para aquela vovó no ônibus. Um sorriso a mais, um abraço que não custa nada. A rotina diária é que faz o ser humano. Gentileza gera gentileza e chama solidariedade, como a que salvou Alan Ruschel e como a que ele está disposto a espalhar. Outra lição é a de Jeovânio, ex-volante do Grêmio.
Em 2006, ele foi alvo de um episódio lamentável de racismo cometido pelo então zagueiro do Juventude Antônio Carlos Zago. Julgado e condenado, o hoje técnico do Inter recebeu suspensão de 120 dias e pagou pena comunitária.
Ao se apresentar no Beira-Rio, Antônio Carlos adiantou-se às perguntas que certamente viriam. Manifestou arrependimento eterno e confessou vergonha quando vê imagens ou fotos passando o dedo no próprio braço, em referência a cor da pele do companheiro de profissão. Que poderia não perdoá-lo. Seria um direito inalienável seu como vítima de racismo, aliás.
A mera lembrança do episódio ainda mexe com o ex-volante, mas repare na grandeza de Jeovânio, em depoimento ao repórter Rafael Diverio:
“Olha, meu filho também é branco. O que posso transmitir para os meus filhos é que não é porque o cara faz alguma coisa errada que vira uma má pessoa. Não é porque você faz mal para alguém que é má pessoa. Não é assim. Ele tem qualidades. Também é pai. Aliás, quem sou eu para falar alguma coisa para o Antônio Carlos? Ele é um vencedor, foi multicampeão. Insisto: torço muito para que ele tenha sucesso na carreira.”
Solidariedade, perdão, tolerância.
Será tão difícil assim, no futebol e na vida?
Em 2017, vale o nosso exercício.
É o que a beleza do gesto simples de Alan Ruschel e de Jeovânio nos ensina.