Não entendo essa aversão à uva passa. Todo final de dezembro é a mesma rejeição pública, as mesmas piadas pejorativas. Por que ninguém se arregimenta para defendê-la? Ela também é minoria, ela também é vítima de bullying. No entanto, devido a alguma tradição desconhecida, chega o dia 24 e a uva passa se imiscui em pratos frios e quentes, na farofa, no arroz.
Isso é intrigante. Por que durante o ano inteiro a uva passa é ignorada e nas festas de Natal e Ano Novo surge com garbo e força?
Suponho que não seja por tradição; seja por marketing. A uva passa dá a impressão de ser coisa fina. Oh, nós vamos fazer festas importantes, as pessoas vão se vestir de branco e tudo mais, então temos de servir refeições de luxo, perus suntuosos, champanhe gelada e muita uva passa.
Eu, com a uva passa, tenho uma relação, mais do que gastronômica, literária. Porque, na remota adolescência, li “As aventuras de Robinson Crusoé”, de Daniel Defoe. A primeira parte deste clássico me deixou encantado com o engenho do protagonista para sobreviver sozinho numa ilha deserta, onde foi parar por causa de um naufrágio.
Hoje, aliás, esse grande romance corre o risco de ser “cancelado”, já que o personagem principal e narrador da história era um traficante de escravos. Crusoé comprava homens, mulheres e crianças na África e os trazia ao Brasil para serem vendidos e submetidos ao trabalho forçado. Antes de começar a parte boa da aventura, ele inclusive passa bom tempo na Bahia. É depois disso que ocorre o naufrágio e Crusoé acaba sendo atirado numa ilhota próxima à Venezuela.
Nessa luta pela sobrevivência, ele constrói um aparato formidável para se abrigar, se proteger e se alimentar. Eu, que tenho dificuldades com trabalhos manuais, morreria à míngua na ilha onde Robinson Crusoé esteve isolado por quase 30 anos.
Nessa lida, ele fez algo aparentemente simples, mas brilhante: colocou uvas para secar ao sol, e elas se transformaram em passas. Assim, Robinson Crusoé podia lançar mão desta guloseima mesmo quando não era mais época de uvas. Genial!
Essa artimanha de Robinson Crusoé ficou marcada em mim. Tanto que, quando guri, deixei um punhado de uvas para secar ao sol sobre a janela do meu quarto, lá no IAPI. Não funcionou. As uvas apenas sofreram um processo de apodrecimento vulgar, atraíram moscas, minha mãe reclamou e as atirou no lixo. De fato, eu não sobreviveria numa ilha deserta. O que me deixa muito chateado. Porém, quando chega o Natal e provo o sabor da uva passa que se esconde na salada de batata, sinto-me com o vigor dos heróis antigos. Então, dou garfadas enérgicas, como se estivesse sentindo a fome de um náufrago, e digo para mim mesmo, com o olhar feroz:
- Eu sou Robinson Crusoé! Eu sou Robinson Crusoé!