Há cerca de três anos, uma equipe de arqueólogos fez uma descoberta que causou certa agitação intelectual nos Estados Unidos. Escavando no terreno da mansão que pertenceu a Thomas Jefferson, na Virginia, eles encontraram o quarto em que viveu a escrava Sally.
Jefferson é um dos chamados “pais fundadores” dos Estados Unidos. É dele o texto da Declaração de Independência, documento que evoluiu para se tornar a base teórica de praticamente todos os movimentos libertários que surgiram do século 18 para cá, inclusive a Revolução Francesa.
Além de ser um pensador importante, Jefferson foi também um homem de ação importante. Como terceiro presidente da República, foi ele quem comprou de Napoleão a Louisiana, uma área gigantesca, que correspondia a um quarto do território do país. O preço do negócio foi de ocasião: 15 milhões de dólares por 2,5 milhões de quilômetros quadrados. Jefferson comprou um país inteiro pelo preço de uma fazenda.
Jefferson considerava a escravidão uma abominação. Mas dono de 600 escravos. Entre eles, Sally, uma mulher linda, de pele brilhante, cabelos longos e porte de rainha. Jefferson se enamorou por Sally e com ela teve filhos. Alguns historiadores chegam a dizer que todos os seis filhos da escrava eram dele, outros dizem que foi só um.
Seja.
Quando o quarto de Sally foi achado, houve algum debate a respeito das contradições de Jefferson, que defendia a igualdade entre os homens enquanto era proprietário de homens. Mais ou menos na mesma época, estátuas do general Lee eram derrubadas de seus pedestais em cidades do Sul, sob a alegação de que ele comandou os confederados na Guerra Civil. Quer dizer: Lee estava ao lado dos estados escravagistas contra os estados abolicionistas.
Por que as estátuas de Lee eram removidas e as de Jefferson não? Por que o racismo de um era diferente do de outro?
Agora, os ingleses de Bristol jogaram no rio a estátua de um traficante de escravos e os paulistas discutem se o monumento a Borba Gato, bandeirante caçador de índios, deve ou não ter a mesma sorte. Acho que Borba Gato vai perder. Primeiro, porque sua estátua é muito feia, mas o que realmente decidirá contra ele é o marketing: Borba Gato não tem grande prestígio em meio à intelectualidade.
Aí é que está: o prestígio do personagem faz toda a diferença. Castello Branco, por exemplo, perdeu por algum tempo o direito de ser avenida em Porto Alegre, por ter sido ditador. Mas Getúlio Vargas também foi ditador e nunca deixou de ser avenida.
Esse é o problema do revisionismo histórico. Distante do contexto, alheio aos valores do tempo em que viveu o personagem, o revisionista julga o passado de acordo com a moral do presente. Mas a moral muda. Às vezes até volta. O que era bom pode se tornar ruim. O que virou ruim pode se tornar bom outra vez.
Que monumentos históricos resistirão ao julgamento dos escrúpulos do século 21? Há um só nome de rua que seja totalmente ilibado? Há uma única catedral que mereça continuar de pé? O que faremos da Basílica de São Pedro, erguida pelo dinheiro vil da venda das indulgências? O que faremos da Muralha da China, que foi cimentada com carne e sangue humanos? Um velho ditado egípcio dizia: “O homem teme o tempo, mas o tempo teme as pirâmides”. Quem diria: hoje, as pirâmides têm razões para temer o nosso tempo.