Tudo isso que está acontecendo é culpa das gotículas. As pessoas emitem gotículas de saliva quando falam, espirram ou tossem, e essas minúsculas partículas viajam fagueiras pelo ar e se imiscuem pelos cinco buracos da cabeça dos outros seres humanos, direta ou indiretamente, e os contaminam.
Você sabe o que esse processo significa?
Pense bem.
Significa que estamos ingerindo gotículas de saliva das outras pessoas o tempo todo. E você sabe o que são gotículas de saliva, não sabe? É cuspe!
Oh, Jesus!
Fiquei pensando em todas as gotículas alheias que ingeri durante a vida. Da minha família inteira, sem dúvida. Dos meus amigos também, é certo. Até aí, tudo bem. Mas há milhares de gotículas que não gostaria de ter ingerido e, temo e estremeço, ingeri.
No meu trabalho de repórter, tive contato estreito com inúmeras gotículas indesejáveis. Quando na editoria de polícia, entrevistei assassinos e ladrões, gotículas do Mal. No esporte, alguns grandes jogadores, mas muitos pernas de pau consumados. Agora, o que mais me assusta são as gotículas dos políticos. São as piores, principalmente porque os políticos gostam de discursar, não são poucos os que falam aos perdigotos, lançando ao vento, mais do que gotículas, gotas.
Na Assembleia Legislativa, havia um deputado famoso pelo seu mau hálito. Quando ele falava, emitia gotículas pestilentas que se evolavam de entre seus dentes e vinham flutuando reto para as narinas do ouvinte, que mareava inexoravelmente. Uma vez, fui pautado para entrevistá-lo. Os colegas setoristas da Assembleia, quando souberam da minha tarefa, se agitaram. Uns se mostraram solidários e me desejaram sorte:
– Força, amigo!
Mas houve os que se divertiram com meu infortúnio. Um deles, o célebre repórter Gustavo Motta, disse que riu muito ao passar por perto de mim na hora da entrevista e constatar que uma lágrima de desespero me corria do olho direito, enquanto o deputado deitava falação.
É dura a vida do repórter.
Em compensação, já conversei com a Gisele Bündchen. Ela foi dar uma pequena palestra em uma livraria de Brookline e me meti no lugar para tentar marcar uma entrevista para o Timeline, da Gaúcha. Gisele chegou marchando, cheia de confiança dentro de botas de cano alto, a cabeleira dourada esvoaçando feito juba de leão, ela toda da cor do mel fresco de Rosário do Sul, arrancando ós das americanas presentes:
– Óóóóó...
Então, acomodou-se em um banquinho e pediu que todo mundo fechasse os olhos e respirasse fundo três vezes, seguindo sua contagem:
– One...
Todos fecharam os olhos, menos eu, que fiquei encantado com a cena.
Depois da palestra, fui falar com ela. Estivemos a 30 centímetros de distância e julgo ainda sentir o odor adocicado de suas gotículas. Foi muito atenciosa, Gisele, e indicou uma assessora para marcar a entrevista, mas talvez a assessora não tenha se acertado com nossa produção, sei lá, só sei que eu e Gisele trocamos gotículas.
Eis aí um fato até poético: nós, humanos, trocamos gotículas uns com os outros. Assim, temos que cuidar mesmo de quem não conhecemos, porque a gotícula do estrangeiro um dia pode estar viajando por dentro do seu corpo. Partilhamos gotículas, amigo. É a prova de que somos irmãos. Ainda que da gotícula de alguns irmãos eu queira distância eterna.