Quando estive na Rússia, há pouco, durante a Copa, detive-me aos pés da grande estátua de Espártaco plantada no pátio do estádio que leva o nome dele, em Moscou. Fiquei algum tempo admirando o monumento. Não que a escultura seja uma obra-prima; não é. Mas ali estava, imortalizada em pedra e bronze, a imagem de um homem que viveu há 20 séculos e que nem russo era – Espártaco nasceu na Trácia, que ficava mais ou menos onde hoje se localiza a Turquia. Foi ele quem liderou a maior revolta de escravos que Roma enfrentou em mil anos.
Há um ótimo livro escrito por Howard Fast sobre Espártaco. Baseado nesse romance, Stanley Kubrick dirigiu um clássico do cinema, Spartacus, com Kirk Douglas como protagonista. "Sir" Laurence Olivier interpreta a nêmesis de Espártaco, o general romano Crasso. Tony Curtis, bem jovem, interpreta um escravo de Crasso. Há uma cena entre os dois que se tornou histórica. Crasso-Olivier toma banho e o escravo Curtis lhe esfrega as costas. Aí Crasso começa com uma conversinha sobre se o escravo gosta de comer ostras e caramujos, numa nem tão disfarçada alusão aos órgãos genitais masculinos e femininos.
– Existe algum problema moral em preferir ostras ou caramujos? – pergunta Crasso. E Curtis:
– Não, mestre.
– É uma questão de gosto, não é?
– É, mestre.
– Eu gosto de ostras e caramujos…
Tenso para o lado do escravo.
Mas o que interessa aqui é que Espártaco foi um herói da liberdade. Os soviéticos, ao incensá-lo tantos séculos depois de sua morte, decerto o consideravam um herói "da classe trabalhadora", já que ele comandou uma rebelião de escravos. Nada disso: Espártaco queria a liberdade. Tanto que ele nem era um escravo "trabalhador", desses que cumpriam tarefas nas vilas dos patrícios, nas minas de sal ou nas mansões de Roma: ele era um gladiador. Ou seja: era obrigado a lutar até morrer. Ou até matar.
Por isso, considerei torta aquela homenagem dos russos ao trácio, porque, afinal, mesmo os que ainda hoje se dizem comunistas haverão de concordar que não havia liberdade na União Soviética.
Porém, foi exatamente ao conversar com russos durante a Copa que me questionei: será que os homens do povo acham mesmo importante a liberdade?
Não se pode dizer que o povo russo viva numa democracia. Se é verdade que já foi muito pior com os comunistas e com os czares, é verdade, também, que Putin, na prática, é um ditador. Mas falei com os russos, vários deles, e a imensa maioria elogiava Putin.
– Tem de ser assim – repetiam. – É preciso ter pulso firme.
Foi mais ou menos o que ouvi quando estive na China, durante a Olimpíada de 2008. Conversava com chineses jovens, quase todos universitários. Perguntava sobre a ditadura e eles, em geral, respondiam:
– Um país grande como a China tem de ser dirigido por um regime forte.
É que a liberdade é cultural. Russos e chineses nunca experimentaram a verdadeira democracia. Nunca provaram da liberdade. Natural que não saibam como ela é.
Esse também é o mal que nos aflige. Tivemos reis, tivemos ditadores, tivemos apenas dois nacos de democracia: três décadas no começo do século 20, três décadas a partir de 1988. Não estamos sabendo lidar com esse nosso anseio de liberdade – às vezes, queremos demais; às vezes, achamos que não deveria haver nenhuma. Estamos atrapalhados. Mas agora, que já provamos da democracia, não há mais como recuar. Haveremos de corrigir os defeitos do sistema, jamais acabar com ele.