Fiquei algum tempo parado diante de uma carta que a pintora Tarsila do Amaral escreveu há quase cem anos para o poeta Oswald de Andrade. A carta está exposta no MoMA, de Nova York, assim como os quadros de Tarsila, é claro.
Gostei de ver as pinturas, mas a carta me comoveu de forma especial. O papel amarelado, a letra cursiva bem desenhada, o carinho que se evolava de cada frase, tudo me pareceu doce e melancólico.
Sentia-me já envolvido pela triste história de Tarsila, quando meu filho me puxou pela manga:
– Vamos?
Ele não queria sair do museu; queria sair daquela sala. Não que desprezasse os quadros de Tarsila. É que estava ansioso para ver outro quadro: Starry Night, A Noite Estrelada, de Van Gogh, exposto mais acima, no quinto andar.
– Espera um pouquinho – pedi.
Naquele momento, a história de Tarsila me fazia especular. Havia chegado à conclusão de que Oswald de Andrade fora o grande amor da vida dela. Construíram juntos o modernismo brasileiro e formaram uma espécie de casal 20 da elite cultural do país. Só que, depois de sete anos de casamento, ele se separou dela para casar-se com uma mulher mais nova, a escritora Patrícia Galvão, a Pagu. Tarsila sofreu muito por causa disso. Examinei o traço de sua letra na velha carta e julguei ter identificado um tipo de resignação dolorida na maneira como ela puxava o rabo das consoantes, mas...
– Vamos? Vamos? – insistia o Bernardo, a angústia se derramando da voz.
Semanas atrás, contei-lhe a história de Van Gogh e assistimos juntos, eu, ele e a Marcinha, a um lindo filme sobre o pintor. O título é Loving Vincent, uma animação inteiramente pintada por mais de cem artistas que empregaram a mesma técnica de Van Gogh. Passou no Brasil, você deve ter visto. Se não viu, veja. No filme, roda a bela música do americano Don McLean, Starry, Starry Night. Disse ao meu filho que o título da música era o título do quadro, ele procurou-o na internet e se apaixonou.
Isso não é incomum. Van Gogh exerce sobre as crianças poder semelhante ao dos Beatles. Apresente a qualquer criança de agora, do século 21, uma música dos Beatles de quarenta e poucos anos ou uma pintura de Van Gogh de cento e tantos e ela vai se encantar. O que, talvez, seja a maior consagração possível para uma obra de arte.
Não se pode dizer o mesmo de Pagu como escritora, por exemplo. Li alguns livros dela e não gostei. São medíocres. Mas sua vida foi trepidante. A respeito dela, o poeta Raul Bopp escreveu:
"Pagu tem uns olhos moles
Uns olhos de fazer doer".
Além disso, era uma intelectual ativa. Tornou-se comunista e, por isso, foi presa e torturada pela ditadura Vargas. Seu casamento com Oswald de Andrade foi tormentoso, pontuado por crises e cenas de ciúme. Pagu acabou se separando dele e do Partido Comunista, trabalhou como jornalista, entrevistou Freud, viajou à China, conheceu Pu Yi, o último imperador, e dele ganhou as primeiras sementes de soja que foram plantadas no Brasil. Tentou suicídio várias vezes e fracassou em todas. Morreu de câncer e virou lenda.
Pensando nessas coisas todas de Pagu, Tarsila e Oswald, eu já estava dançando com fantasias na minha cabeça, quando meu filho insistiu:
– Vamos! Por favor!
Suspirei. Decidi atendê-lo para voltar mais tarde. Minutos depois, estávamos no quinto andar. Passamos por uma sala e por outra e outra e mais outra, e nada do quadro de Van Gogh.
– Será que o Starry Night não está aqui? – reclamava o Bernardo.
Mas estava. Ele foi o primeiro a ver e, ao vê-lo, emitiu um grito de vitória. Correu para lá. Fui atrás. Detive-me em frente ao quadro. Vou contar o que vi amanhã.