Pouco antes de partirmos para o Brasil, eu e o meu filho caminhávamos pelas ruas de Boston e vimos uma placa pregada na parede de uma casa. Achei curioso e parei para ler o que dizia. Como não havia cerca, o Bernardo correu até lá para olhar mais de perto. Não lembro do que estava escrito, mas sim do que foi dito por uma voz masculina grave, vinda de algum ponto sombrio do jardim:
"Senhor. Quer, por favor, cair fora da minha propriedade?".
Essa ocorrência de menos de 30 segundos resume importantes valores norte-americanos e explica o que está acontecendo por lá e, também, um pouco do que se dá por aqui.
Há uma palavra que define o que são os Estados Unidos. Vou abrir um parágrafo só para ela, devido a sua relevância:
Indivíduo.
O indivíduo é o rei, nos Estados Unidos. Toda a democracia americana gravita em torno do indivíduo. A liberdade de um único homem é mais importante do que quaisquer necessidades coletivas, mas, para que essa liberdade seja assegurada, são indispensáveis garantias coletivas.
A primeira garantia é a da lei. A lei assegura que todos os homens são iguais, porque todos se submetem a ela. E ela é um produto da coletividade, ela foi escrita pelos representantes da coletividade, eleitos pela coletividade.
Assim, um homem que cumpre a lei é intocável. Sua privacidade é uma extensão dele mesmo.
Por isso sua propriedade é inviolável, ainda que não tenha cercas e muros a delimitá-la.
Por isso aquele homem ordenou: "Caia fora da minha propriedade". Porque era como se eu e o Bernardo o estivéssemos agredindo pessoalmente.
O indivíduo pode fazer o que bem entender, dentro da sua propriedade e dentro da lei. Pode, também, pensar o que bem entender e expressar este pensamento, desde que suas ações não infrinjam a lei. É por esse motivo que a grotesca Ku Klux Klan, por exemplo, ainda existe e se reúne e se manifesta. Os burlescos racistas da Klan podem dizer as asneiras que quiserem, desde que não discriminem na prática.
Tudo o que ameaça essa liberdade do indivíduo é uma afronta para o americano. Quando a Suprema Corte decidiu que o casamento gay era legal em todo o país, houve insurgências. Nem tanto contra os gays e sim contra a interferência da Suprema Corte nas legislações estaduais. Escolher a lei do seu Estado e da sua cidade é, para os americanos, um direito inalienável, porque Estado e cidade são, como a propriedade particular, extensões do indivíduo. É a "minha" cidade, o "meu" Estado. A União não tem nada a ver com eles.
Entrando no caso específico da manifestação supremacista de sábado passado, lembre-se de que ela estourou em protesto contra a possível retirada de uma estátua do general Robert E. Lee de um parque da cidade. O general Lee foi líder dos Confederados na Guerra Civil. Os Confederados lutavam pela independência exatamente porque a União fizera uma interferência nas legislações estaduais, banindo a escravidão.
Perceba a diferença: eles não lutavam para manter a escravidão; lutavam pelo direito de mantê-la, se assim decidissem. Já Lincoln e seus ianques não lutavam contra a escravidão; lutavam contra a desintegração da União. Lincoln, inclusive, pregava que todos os negros deviam ser "livres, mas não iguais aos brancos".
Você notou como tudo se relaciona? A importância da liberdade individual faz com que o americano considere vital decidir sua própria lei no lugar em que vive. E faz com que considere vital poder dizer o que pensa, mesmo que seja contrário ao senso comum. É por esse motivo que a pressão do politicamente correto ofende o americano médio até lhe revolver as entranhas.
Por que outros se acham no direito de dizer o que ele deve pensar? E a sua privacidade? E a sua individualidade?
A retirada da estátua do general Lee é como se fosse a interferência do politicamente correto nas questões particulares da Virgínia. É o geral e universal tentando regular o municipal. Obama e os democratas, os artistas de Hollywood, a grande mídia e os modernos de Nova York representam esse mundo externo, invasor e enxerido, que aponta o dedo, julga e pretende dizer aos outros o que se deve pensar e sentir. Donde, a revolta. Mas o que isso tem a ver com o Brasil? Sigo. Aguarde.