Assisti ao vivo, pela internet, à desocupação daquele prédio da General Câmara, numa nervosa transmissão do repórter Eduardo Matos, da Gaúcha.
Não foi a primeira ação de reintegração de posse que acompanhei, nessa longa estrada da reportagem. Sei, por isso, que são eventos sempre tristes. Os posseiros, em geral, são pessoas necessitadas e desesperadas. O despejo, em si, é um ato de violência. É uma expulsão, e nenhuma expulsão é macia.
Mas, evidentemente, os proprietários do imóvel têm seus argumentos. No caso, o edifício ocupado é um prédio histórico, em localização nobre, de propriedade do Estado. Ou seja: da coletividade. As autoridades dizem que, se bem usado, o prédio renderia recursos que poderiam ser empregados em benefício de muito mais pessoas do que as 60 famílias invasoras. Além disso, como tornar privada uma propriedade pública? Como dar a 60 famílias um bem que é de milhões?
Cada parte tem seus motivos. Quando isso acontece, como se deve proceder, num Estado democrático de direito?
Aí está um termo que ouço em abundância. Todo mundo fala em Estado democrático de direito e, de fato, o conceito está lá, bem no começo da Constituição de 1988, aquela que Ulysses brandiu da mesa do Congresso, gritando:
– Temos ódio da ditadura! Ódio e nojo!
Pois está escrito na Constituição: o Brasil é um Estado democrático de direito.
O que é isso mesmo?
Se você pesquisar, descobrirá que muita filosofia foi pensada e muita história foi vivida até as sociedades modernas alcançarem esse conceito. Mas, para resumir, diria que o Estado democrático de direito é o que tenta promover o equilíbrio entre liberdade e igualdade.
Não se trata de tarefa simples.
Liberdade em excesso gera desigualdade. Mas a igualdade imposta é inevitavelmente repressora, é assassina das liberdades. O Estado democrático de direito, portanto, tem essa função delicada de regulação. Às vezes, solta um pouco; às vezes, reprime um pouco.
Assim, repito a pergunta: como deve se comportar o Estado democrático de direito em casos pedregosos como o da desocupação da General Câmara?
Ora, quando há duas partes em litígio, ambas com suas razões, é preciso apelar para a Justiça. A função da Justiça é exatamente essa: dirimir conflitos. E se, depois de tomada a decisão, uma das partes resiste em cumpri-la, a Justiça terá de usar seu braço repressivo, que é a polícia.
Foi o roteiro do que aconteceu no centro de Porto Alegre. Quer dizer: foi uma ação legítima. Dentro do Estado democrático de direito.
Mas que importância tem isso para as famílias que ficaram ao relento? De que serve a um pai saber que foi através de instrumentos do Estado democrático de direito que sua família ficou sem teto? Quem passa fome pouco está ligando para a legalidade ou para a justiça. Quem passa fome quer apenas comer.
Essa é a desgraça brasileira. O Brasil é prisioneiro da sua pobreza. A pobreza lança o país em contradições. Como valer-se da legalidade diante de uma criança faminta ou de uma mãe que chora? Como resolver os dramas de todas as mães aflitas e de todas as crianças carentes se o país não oferece a segurança jurídica que permitiria o desenvolvimento e o fim da aflição e da carência?
É uma questão complexa.
Desconfie de quem tem respostas singelas a essas perguntas. Desconfie de quem resume qualquer dilema a uma disputa entre mocinhos e vilões, ricos e pobres. Desconfie dos grandiloquentes, dos que falam em heroísmo, dos que propagam sua própria superioridade moral. Desconfie. Porque, se nada é tão fácil no mundo, tudo é ainda mais difícil no Brasil.