Hoje em dia, os homens não se importam mais com a cornitude. Fica feio um homem reclamar da traição. As mulheres o acusam de machista e incivilizado.
As mulheres, sim. As mulheres do século 21 se enfurecem com a traição masculina e acusam o traidor de machista e incivilizado.
Houve tempo, porém, em que o homem traído não raro ficava muito brabo e podia até tornar-se violento.
Justamente nessa época, aconteceu um caso assustador com um amigo meu, cujo nome não posso declinar por razões que logo se tornarão óbvias.
Deu-se assim: ele estava em casa em um sábado à tarde, quando soou a campainha do interfone.
Ué? Quem será? Ele não esperava ninguém...
Foi atender e, lá de baixo, veio uma vozinha rouca que ele conhecia bem: era a mulher do delegado.
Esse delegado tinha fama de ser malvado. Tratava-se de um homem grande e sério. Sempre sério.
Já a mulher do dito cujo era uma moça muito alegre, muito bonita e muito mais jovem do que ele. Ela e meu amigo se conheceram porque eram vizinhos, moravam na mesma rua, encontravam-se na vendinha, no bar da esquina, na padaria. A cada encontro, conversavam por bastante tempo, ele dizia bobagens, ela ria.
– Você me faz rir – ela vivia repetindo, e ele se inflava de bobo orgulho masculino.
Mas nada havia acontecido de mais importante.
Até aquele sábado.
Pelo interfone, ela pediu para subir ao apartamento dele. Subiu. Quando ele abriu a porta, deparou com ela vestida de abrigo de ginástica e tênis. Ela entrou. Parada na sala, pediu, como se miasse:
– Traz algo pra gente beber?
Ele foi à cozinha e, quando voltou, ela havia tirado o abrigo. Estava só de calcinha vermelha. E tênis.
A partir daí, meu amigo começou a ter um caso com a mulher do delegado. Os outros amigos, ao saber da coisa, advertiam:
– Está louco! Esse cara vai descobrir! Ele vai te matar!
Meu amigo começou a se assustar, mas, ainda assim, não se animava a desfazer o caso. Os amigos insistiam:
– O homem é uma fera! Ele vai te dar choque na delegacia.
Os avisos deram resultado. À noite, ele sonhava com torturas horríveis. De dia, imaginava uma forma de pular fora sem deixar a moça ofendida.
Um dia, ele estava em casa, assistindo ao Jornal Nacional, quando recebeu um telefonema. Era o delegado. Meu amigo estremeceu. Ficou quase sem voz. "Por mil paus de arara", pensou, "ele descobriu!".
– Quero te fazer uma pergunta – disse o delegado, com certo tom de ameaça na voz.
Meu amigo sentiu vontade de chorar. Todas as sirenes de perigo uivaram na sua cabeça. Decidiu contragolpear com sinceridade.
– Foi ela quem veio aqui! – gritou. – Foi ela!
Do outro lado da linha, silêncio. Após alguns segundos de tensão, o delegado sussurrou:
– Só estou ligando para pedir ajuda para a delegacia...
Era alguma maldita ação comunitária.
Meu amigo teve de, primeiro, se homiziar na casa dos pais e, depois, se mudar de bairro.
Lembrei dessa história quando entrevistamos o senador Roberto Requião, nesta terça-feira, no Timeline. Ele falava do Uruguai, por telefone. Foi uma conversa mais ou menos previsível, até que, já nas despedidas, o Potter, sem nenhuma segunda intenção, perguntou:
– O senhor está fazendo o que no Uruguai? Comprando carne?
O homem se espinhou. Rosnou:
– Ô, rapaz, se tu estivesse na minha presença, tu tinha recebido um tapa no focinho por essa pergunta.
Nós todos nos assustamos, a pergunta era descontraída, no tom do programa, sem qualquer malícia. O Potter ainda tentou se explicar, mas Requião chamou-o de moleque e desligou o telefone, nos deixando embasbacados.
Requião se comportou como meu amigo, ao receber o telefonema do delegado.
Será, talvez, alguma culpa recôndita? As culpas, às vezes, gritam sem o dono da culpa perceber.