Fui ao apartamento de Alcindo, num dia do começo dos anos 90, a fim de entrevistá-lo. Era uma tarde quente, e Alcindo me recebeu com a camisa de mangas curtas aberta na barriga veneranda. Em certo momento, ele se acomodou no braço do sofá da sala, olhou pela janela e suspirou:
– Ninguém mais vem me entrevistar... Eu passei...
Alcindo manifestou a dor do ídolo esquecido. Entendi o que sentia, mas não concordei. Alcindo não passou.
Pegue seu carro e vá à Cascatinha. Olhe para as ruínas daquele templo caído, daquele Coliseu de Porto Alegre: o Estádio Olímpico. Pois saiba que ali, à sombra do cemitério, ninguém marcou mais gols do que Alcindo. A cada três vezes que Alcindo pisou no gramado do Olímpico para jogar futebol, em duas ele fez gol.
É ainda o maior artilheiro da história mais que centenária do Grêmio. Mais que Luiz Carvalho, o "Rei da Virada"; mais que Juarez, o "Tanque"; mais que Tarciso, o "Flecha Negra"; mais que André, o "Catimba"; mais que Baltazar, o "Goleador de Deus"; mais que Jardel e Paulo Nunes, a "Dupla Dinâmica"; mais que qualquer outro e acima de qualquer outro está Alcindo, o "Bugre Xucro".
Vi Alcindo destruir defesas praticamente sozinho, em especial as do Internacional. Ele adorava jogar o jogo mais importante do mundo, o Gre-Nal. Estreou em um Gre-Nal, e fez três gols. Arrumou um inimigo eterno, o goleiro colorado Gainete. Nos clássicos, eles passavam o tempo todo se insultando. Hoje, as ofensas acabariam em delegacia, processo, punição aos clubes. Naquele tempo, era normal, briga de homem, ninguém tinha nada a ver com isso. O duelo dos dois virou atração. Os torcedores iam ao Gre-Nal para vê-los se enfrentando. Na inauguração do Beira-Rio, o ponto alto da briga em que 20 (eu disse, vinte!) jogadores acabaram expulsos foi quando Gainete saiu correndo da sua área para dar uma voadora nas costas de Alcindo. Errou o pulo, caiu no meio de um bolo de jogadores do Grêmio e apanhou como se fosse um motorista do Uber cercado por taxistas.
Um dos clássicos mais espetaculares de Alcindo, porém, não tinha Gainete como inimigo. Foguinho, então treinador do Inter, o havia substituído por Schneider para impedir o heptacampeonato do Grêmio, em 1968. Alcindo, assessorado por Volmir “Massaroca”, despedaçou a zaga do Inter e o Grêmio venceu por 4 a 0. Um dos gols foi de falta. A bola estava na intermediária, a uns bons 35 metros do gol. Alcindo veio de lá e meteu-lhe uma patada. Schneider levou o gol, e ficou marcado para sempre.
Alcindo também ficou marcado para sempre. Não apenas por aquele gol, mas por tantos outros que fez com a camisa do Grêmio. Lembro dele ter me dito:
– Dei muito ao Grêmio, mas o Grêmio me deu mais.
Quem diria isso hoje?
Não, não, Alcindo estava errado. Alcindo não passou. Alcindo, o Bugre Xucro, o deus do Olímpico, é eterno, e o que é eterno sempre será. Mesmo que ninguém mais fosse entrevistá-lo, mesmo quando não sobrar de pé uma única arquibancada do velho estádio da Cascatinha, mesmo quando tudo o que ele fez seja só lembrança, a lembrança será o suficiente. Alcindo. Para sempre.