Poucas vezes uma decisão judicial expôs tanto as diferenças entre a cúpula do Judiciário – internamente, inclusive, com divergências entre ministros – e o Ministério Público Federal. Ao censurar a publicação de reportagem sobre suposta relação entre o ministro Dias Toffoli e a Odebrecht e manter inquérito sobre fake news, passando por cima do pedido de arquivamento da procuradora-geral da República (PGR), Raquel Dodge, o ministro Alexandre de Moraes provocou uma reação poucas vezes vista contra o Supremo Tribunal Federal (STF). Presidente da Associação Nacional dos Procuradores do MPF, José Robalinho Cavalcanti avalia que Moraes e Toffoli extrapolaram suas funções.
Como o senhor avalia a queda de braço entre PGR e STF sobre o inquérito das fake news?
É uma preocupação de todos nós quando há dificuldade institucional. A doutora Raquel Dodge, na sua manifestação, no mérito, está absolutamente correta. Esse é o problema basilar, além de vários outros que têm nessa investigação. Todo o Ministério Público firmou um arco de apoio muito claro, respeitoso a que o Supremo reveja essa posição. Em uma democracia, qualquer democracia, o Poder Judiciário é pilar fundamental para a construção da estabilidade democrática e para continuidade da defesa dos direitos. O Supremo é o topo do Poder Judiciário.
Existe uma crise institucional?
Se você quiser chamar no nome amplo da palavra, de que há um determinado conflito de entendimento entre o presidente do Supremo Tribunal Federal e o Ministério Público, você chamar de crise, não tenho medo da palavra. Mas o importante é que isso seja superado institucionalmente e o Supremo tem mecanismos para isso.
Como superar a crise?
As nossas ações foram colocadas em um formato que foram levadas a outro ministro: elas estão nas mãos do ministro Edson Fachin. Estamos questionando atos do presidente Dias Toffoli e do ministro Alexandre Moraes. Não são eles que podem decidir sobre o questionamento desses atos, mas os outros ministros (do STF). Isso dará uma oportunidade, não só a Fachin, de fazer avaliações singulares sobre os argumentos que estamos fazendo, mostrando que há situações ali que não correspondem ao que deveria ser pela lei. (É preciso) levar ao plenário para que dê a última palavra. Temos muita confiança de que vai concluir que essa investigação é incabível, que é investigação indefinida em termos de objeto e de tempo e que a intervenção sobre os sites de notícia não se justifica do ponto de vista da lei, com a devida vênia ao relator Alexandre Moraes. Acabou configurando uma censura, está claro para toda a população. O Supremo tem construído uma doutrina extremamente importante no país de defesa da liberdade de expressão. Não é possível que agora retroaja por conta de uma decisão mal colocada em um inquérito.
O ministro Dias Toffoli afirmou que a PGR opina, dá parecer, mas quem decide é a magistratura. Ele está certo?
Nunca houve nenhuma pretensão do Ministério Público de ocupar a posição do Poder Judiciário. O princípio acusatório significa que quem cuida da investigação é o MP, e isso não existe em favor do MP. Existe para proteger o próprio Judiciário. O Ministério Público não é poder, mas um órgão autônomo que representa a sociedade perante a Justiça. Quem é poder é o Judiciário, dá a última palavra sobre as questões. Por ele ser quem vai julgar em última instância, para garantir a sua isenção e para garantir a aparência de isenção, não pode participar do processo de investigação. É um erro grave insistir nisso. A não ser que o Supremo queira rasgar o princípio acusatório e dizer que ele próprio, além de fazer investigação, vai cuidar também de fazer a denúncia.
Dias Toffoli e Alexandre de Moraes, então, extrapolaram suas funções?
Na medida em que a gente diz que não estão correspondendo à lei, sim, eles estão extrapolando. Mas é muito necessário dizer o seguinte: essa decisão terá de ser tomada pelo próprio Supremo. Não há nenhuma dúvida de que só o Supremo pode conter o Supremo ou rever um ato do Supremo. Entramos, por exemplo, com duas ações: um habeas corpus mais genérico e um mandado de segurança. E pelo ordenamento jurídico, foram entregues à apreciação de um outro ministro – no caso, Fachin, que tem poder jurisdicional idêntico ao de Moraes, e que vai avaliar se ali houve alguma situação que, na opinião dele, extrapola ou não. O ideal é que no final seja levado ao plenário, que vai decidir. Se for contra o que estamos defendendo, vamos respeitar. Somos escravos da lei e da Constituição.
A impressão que passa é de que o STF tenta se blindar. Primeiro, ao censurar a imprensa. Depois, em tentar fazer uma caça às bruxas ao perseguir quem fala mal da Corte.
É uma impressão negativa que acaba decorrendo de mais essa circunstância de que o Supremo abre um inquérito dizendo que é competência dele, Supremo, por ele, Supremo, ser vítima. Isso também não é uma coisa positiva. Na nossa ordem jurídica, a competência para conduzir inquéritos e investigações não deriva do fato de eventualmente um órgão que vai conduzir (o inquérito) ser ou não a vítima e ser atingido. Ao Supremo, levantar essa situação cria, sim, um constrangimento para a Justiça como tudo. Não tenho como negar, porque é incabível essa postura de que, como o Supremo é atingido, só o Supremo pode investigar. A doutora Raquel e o Ministério Público como um todo têm absoluta convicção de que ataques ao Supremo são negativos para a democracia, são inadmissíveis. Você não pode ter um ataque estimulando violência ou contrariando as funções institucionais do Supremo. Nunca ninguém do Ministério do Trabalho trabalhou em sentido contrário. Por isso, com todo o respeito, é ainda mais injustificado imaginar porque o Supremo Tribunal Federal não seguiu o caminho que determina a Constituição no princípio acusatório, que seria representar o Ministério Público, e nós tocaríamos a investigação, que seria levada depois perante o Supremo.
Sempre lembrando que, quem se sentir ofendido por alguma notícia ou comentário, tem caminhos jurídicos para buscar reparação.
Cabe a qualquer Suprema Corte um papel que é fundamental e, às vezes, incompreendido: o de manter os padrões do devido processo legal. Existem leis que determinam como os processos de investigação, os processos cíveis e criminais devem ocorrer. Se por acaso os padrões de defesa e os de execução não foram corretamente colocados, isso muitas vezes acaba resultando em nulidades determinadas pelo tribunal superior, que doem no caso concreto, mas que no ordenamento são importantes para que as cortes superiores exijam um padrão mínimo. É algo muito grave se observar que, independentemente do fato, como se fosse pouco, que não cabe ao Judiciário fazer investigação, o padrão de investigação tem sido muito abaixo do que se poderia exigir. Não é possível uma investigação ser feita de maneira sigilosa com uma portaria aberta sem definir qual é o objeto que está sendo investigado, quais são as pessoas, quais são períodos de tempo. Isso foi posto pela doutora Raquel Dodge, foi colocado por nós na nossa manifestação, e é algo realmente incabível. Digo com absoluta tranquilidade de quem tem experiência de duas décadas, como eu tenho, de trabalhar com procurador criminal. Se uma investigação policial comum fosse inaugurada com uma portaria tão vaga e alguém impugnasse perante o Poder Judiciário, tenho a mais absoluta certeza de que seria deferido um habeas corpus de imediato para trancar por inviabilidade de continuar com tão poucos elementos.