Cecília M., brasileira que reside em Buenos Aires, onde trabalha como professora de Português, está cismada com o emprego de a gente. Ela sempre ensinou a seus alunos que o brasileiro emprega a gente como um substituto moderno, cada vez mais comum, para o pronome nós, e que eles, como hispanofalantes, devem resistir à tentação natural de equipará-lo ao la gente do Espanhol, que devem traduzir, em nosso idioma, por as pessoas ("la gente anda diciendo" é, em vernáculo, "as pessoas andam dizendo"). A dúvida surgiu, porém, quando encontrou, no dicionário Houaiss, exemplos em que a gente também pode ser usado para designar "pessoas, povo" ("a gente da roça", "a gente brasileira"); daí a sua pergunta: "Eu estava errada, professor? Que esteja no Houaiss não satisfaz minha dúvida, porque o fato de constar no dicionário não quer dizer que seja usual".
Prezada Cecilia, tens razão ao restringir o uso de a gente a mero pronome pessoal equivalente a nós. Entre "nós chegamos tarde" ou "a gente chegou tarde", tanto faz dar na cabeça como na cabeça dar (observada, é claro, a concordância adequada do verbo). As duas formas são verdadeiras irmãs xifópagas, como se pode apreciar em frases como esta, do
Nelson Rodrigues: "Se baixassem um decreto mandando a gente andar de quatro – qual seria a nossa reação?". Acrescento um conselho de colega: seria bom advertir também teus alunos de que às vezes eles vão encontrar por aqui aberrações como "*a gente somos" ou "*agente veio de ônibus", mas que eles não se espantem, porque isso são efeitos deletérios de um laxismo pedagógico que, como o mosquito da dengue, um dia haveremos de erradicar.
É bastante comum, no entanto – como viste no Houaiss – dissociar o substantivo gente do nós, empregando-o para designar um grupo específico de pessoas, unidas por alguma característica que compartilham – só que, neste caso, ele vem invariavelmente seguido de um adjetivo ou de uma expressão preposicionada: a gente daquele tempo, a gente do campo, a gente da noite, uma gente esquisita, etc.
Para dizer aquilo que o Espanhol expressa com la gente – "as pessoas", como tu dizes –, o Português nos dá duas opções. A primeira é toda a gente:
"A lanterna fazia parar toda a gente, tal era a lindeza da cor"; "É o Imperador! Toda a gente chegava às janelas para vê-lo passar" (para ficar no Machado de Assis). A outra é usar as gentes, no plural. Observa: "A rua estava agora mais agitada; as gentes iam e vinham por ambas as calçadas" (Machado de Assis); "Batalhão de Infantaria da Força Pública, onde as gentes aprendiam a manejar... até metralhadoras pesadas" (G. Rosa); "andarem pelos povoados, assustando as gentes" (Simões Lopes Neto); "O nosso jornal de cada dia/ inteiramente alheio ao murmurar das gentes"(Mario Quintana). Nesses exemplos, os autores optaram pelo plural exatamente porque sabiam que o singular geraria uma inevitável ambiguidade.