A submissão feminina era um princípio enraizado em leis e costumes no século 18. Aristocratas e plebeus, sábios e analfabetos, crentes e céticos, todos concordavam que suas filhas e esposas eram inferiores física, intelectual e moralmente – e não faltavam teorias furadas para tentar explicar por que uma metade da espécie havia sido programada para mandar na outra.
Em 1791, uma escritora chamada Olympe de Gouges tentou emplacar uma ideia revolucionária entre a rapaziada que estava armando a Revolução Francesa: e se a gente incluísse as mulheres na Declaração dos Direitos do Homem? E se a mulherada fosse livre para estudar, trabalhar, casar, se separar do marido, casar de novo (ou não) e ter filhos quando quisesse? Não ia ser massa? A conversa, claro, não foi adiante. Não apenas porque ninguém se interessou pelo assunto, mas porque a autora da ideia perderia a cabeça (literalmente) em 1793. Do outro lado do Atlântico, a recém-promulgada Constituição dos EUA também não convidava negros e mulheres a participar da festa da democracia. Naquela época, vejam só, a falta de coerência não parecia estragar o sono – ou a Páscoa – de ninguém.
De lá para cá, a revolucionária ideia de que homens e mulheres deveriam ser iguais perante a lei avançou, aos trancos e barrancos, em quase todo o planeta. Parte do pacote de direitos que vêm sendo conquistados ao longo dos últimos 250 anos (estudar, votar, concorrer a cargos públicos, ir e vir sem pedir amém para o marido ou o pai,…), a legalização do aborto ainda é uma das causas em disputa no século 21. Felizmente, o consenso de que o direito sobre o próprio corpo é o mais básico de todos tem empurrado a legislação para frente. Desde 1994, 59 países (inclusive nossos vizinhos Argentina e Uruguai) expandiram o direito das mulheres de decidir se o pacote de células que carregam no útero deve ou não virar um ser humano dentro delas. Se a Suprema Corte derrubar a decisão que tornava inconstitucional a proibição total do aborto pelos Estados, os EUA entrarão para o pequeno grupo de países que foi na direção contrária – junto com Polônia, El Salvador e Nicarágua.
Esse retrocesso não é casual. A maioria dos americanos segue acompanhando a tendência de apoio à flexibilização de regras: 59% dos adultos dos EUA acreditam que o aborto deveria ser legal em todos ou na maioria dos casos, enquanto 39% acham que o aborto deveria ser ilegal em todos ou na maioria dos casos. Dois fatores explicam a marcha a ré histórica: a recente transformação do aborto em bandeira política do conservadorismo (nem sempre foi assim) e uma série de manobras colocadas em prática pelo Partido Republicano com o objetivo de impor a opinião da minoria conservadora no Senado e na Suprema Corte.
Coerência continua não sendo o forte quando se trata de direitos das mulheres: boa parte dos que se dizem “pró-vida” são também a favor da pena de morte.