Riobaldo acredita e não acredita no diabo: há e não há. Não tem certeza se vendeu a alma em troca de força e poder, mas intui que é nos crespos do homem que se esconde o verdadeiro redemoinho da maldade. “O demônio não precisa de existir para haver – a gente sabendo que ele não existe, aí é que ele toma conta de tudo.”
Do outro lado do mundo, mas mais ou menos na mesma época, Adrian Leverkuhn recebeu a visita de um representante do demo em pessoa. A criatura, que pode ou não ser fruto de um delírio, apenas anuncia ao incrédulo interlocutor que o pacto já está firmado: nos anos seguintes, o jovem compositor irá concretizar suas mais altas ambições criativas. Em troca, Leverkuhn deve renunciar a tudo que traz calor à alma. Ou seja, precisa abdicar do amor em todas as suas formas.
O jagunço brasileiro e o compositor alemão fazem parte de uma longa tradição de pactários da literatura universal. Doutor Fausto (1947), de Thomas Mann, e Grande Sertão: Veredas (1956), de Guimarães Rosa, lançam mão de um mito de origem medieval para esquadrinhar não apenas as atormentadas almas de seus protagonistas, mas suas circunstâncias históricas: a Alemanha que produziu o nazismo, no caso de Mann, e o Brasil da jagunçagem (que mais tarde seria também o das milícias), no caso de Rosa.
Em um ensaio publicado em 1960, o crítico Roberto Schwarz (meio austríaco, meio brasileiro) apontou pontos em comum entre os dois romances. Schwarz mostra que as duas narrativas, em registro realista, têm como eixo um esforço de interpretação dos fatos que marcaram a trajetória dos seus personagens centrais. Riobaldo, narrando sua história para um interlocutor silencioso, e Serenus Zeitblom, escrevendo a biografia do seu amigo genial, examinam o passado para lhe dar significado. Nesse contexto, o mito do pacto com o diabo estaria associado a uma espécie de consciência histórica. Como cheguei até aqui? Que preço foi pago? Que culpas devo expiar? Que lições posso extrair desses episódios?
Durante a ditadura, parte dos militares brasileiros firmou um pacto com o mal absoluto ao chancelar uma de suas manifestações mais abjetas, a tortura. Qualquer justificativa é insustentável, mas havia no ar um “há e não há” apoiado na tese de que as figuras de comando do Exército desconheciam o que acontecia nos porões do regime. Os áudios inéditos das sessões do Supremo Tribunal Militar revelados na semana passada provam que o pacto foi firmado com a plena consciência dos pactários.
Ao eleger um presidente que abertamente celebra a tortura, o Brasil descobriu da pior forma possível o que acontece quando decidimos abrir mão da consciência histórica. Se não acertarmos devidamente nossas contas com o passado, nunca nos livraremos dessa assombração. O demônio não precisa existir para haver.