O que você faria se soubesse que tem poucos meses de vida pela frente? Aos 84 anos, o jornalista Carlos Reverbel decidiu fazer uma viagem. Não para fora de Porto Alegre ou mesmo para muito longe de sua poltrona favorita, mas para o próprio passado. Em cadernos de espiral comuns, Reverbel foi colando cartas antigas, fotografias, recortes de jornal, lembranças de viagens, recordações de família, laudas de jornal. Sem ordem, ao ritmo de quem trabalha e se diverte ao mesmo tempo.
O processo de revisitar papéis antigos parecia incluir algum aspecto terapêutico. Manusear os vestígios da própria trajetória era uma maneira de “guardar” (tanto no sentido de preservar quanto no de admirar, como sugere o poema de Antonio Cícero com esse título) o passado, mas também uma estratégia para não se inquietar com o futuro. Em determinado momento, a rotina de colagens se transferiu para o quarto do hospital onde Reverbel morreria em 27 de junho de 1997 – a algumas páginas de finalizar o trigésimo primeiro caderno.
Eu havia conhecido Carlos Reverbel seis anos antes, em 1991, quando preparava meu trabalho de conclusão no curso de Jornalismo da UFRGS. Sem saber quase nada sobre o jornalista (biógrafo de Simões Lopes Neto, pesquisador de história e literatura, editor e repórter da Revista do Globo, da revista Província de São Pedro e da Caldas Júnior, além de cronista), escolhi como objeto de estudo os textos que ele publicava em Zero Hora nos anos 1990. Desse encontro entre uma jovem em início de carreira e um veterano nasceu um trabalho de conclusão de curso, depois um livro (Arca de Blau, de 1993) e uma amizade.
O processo de revisitar papéis antigos parecia incluir algum aspecto terapêutico
Quase 30 anos depois do nosso primeiro encontro, em 2019, me vi cercada por uma pequena montanha formada por cadernos coloridos amarrados por barbantes. O objetivo era revisitar o acervo de documentos guardados nos cadernos – que eu apelidei de “tumultuário” – como parte de uma pesquisa de mestrado que foi defendida, na semana passada, no Instituto de Letras da UFRGS.
Nesse período em que tentei estabelecer alguma ordem nesse labirinto de personagens e épocas entrecruzadas, muitas vezes cedi à tentação de embarcar nessa viagem no tempo como quem pega carona sem destino certo. Li jornais que não existem mais e cartas de pessoas que já morreram. Acompanhei embates acalorados que perderam o sentido e vi discussões sobre problemas que continuam sem solução. Encontrei alguns personagens importantes que foram engolidos pelo esquecimento e outros que ainda continuam vivos na memória da posteridade. E em meio a todas essas histórias, achei fotos minhas, aos 25 anos, e reportagens que escrevi naquela época – lembretes de uma juventude que foi ontem e há séculos ao mesmo tempo.
Meu amigo tinha razão. Contemplar o passado não como se ele estivesse perdido, mas como se continuasse vivo e em movimento, em alguma dimensão da memória, me parece uma das maneiras mais serenas de encarar a própria finitude.
Como se a vida não terminasse abruptamente em um ponto final, no fim de uma página, no epílogo de um livro, mas em dois-pontos ou travessão: uma travessia, um tumultuário