Aquela turma de pesquisadores do projeto "Sonhos em tempos da pandemia", que vem recolhendo e analisando relatos oníricos dos últimos meses, já deve ter topado com muitos pesadelos parecidos com o meu: sonhei que a Avenida Anita Garibaldi, no discreto trecho entre a Silva Jardim e a Arthur Rocha, havia se tornado um campo de batalha.
Eu tentava chegar em casa, a pé, ainda contente por ter acabado de escutar no rádio uma música nova do Nei Lisboa (fica a dica, Nei) quando avistei os blindados estacionados na frente do Zaffari da Anita. Soldados armados corriam de um lado para o outro entre farmácias e lojas de móveis, tiros estilhaçavam os vidros de uma agência bancária, o posto da esquina já corria o risco de explodir. Em meio a todo esse caos, meus vizinhos, confusos como eu, não sabiam para onde correr. Meu dilema era decidir se tentava chegar em casa de qualquer jeito ou se fugia dali o mais rápido possível. A angústia de não conseguir avançar na confusão nem chegar em casa fez com que eu acordasse.
Não é muito difícil rastrear as origens do "conteúdo manifesto" (a historinha que o sonho conta) ou os sentimentos mais profundos tentando vir à tona disfarçados. Nos últimos dias, já fora do Brasil, tenho conversado com muitos amigos angustiados com a situação de colapso em Porto Alegre. Não raramente, metáforas de guerra aparecem nas conversas: bunkers, bombardeios, sacrifícios, insegurança, medo de morrer. "Em tempos de racionamento de liberdade e satisfação pessoal, temos que comemorar cada batata de boa notícia que trazemos para casa", me vi consolando uma amiga, talvez exagerando um pouco no tom de autoajuda.
O fato é que quando a coisa aperta, até autoajuda ajuda. Lembrei daquele slogan motivacional lançado na Grã-Bretanha no início da II Guerra que se tornou mania mundial por volta de 2012. Durante algum tempo, as infinitas variações do "Keep Calm and Carry On" estamparam memes, camisetas, quadrinhos, almofadas, panos de prato... E, assim como a moda veio, foi. A certa altura, "Keep Calm and Carry On" virou o Romero Britto dos slogans motivacionais: ninguém aguentava mais.
É uma pena que a frase tenha se tornado xarope antes do tempo. Ou talvez o sucesso repentino de 10 anos atrás tenha sido uma espécie de alerta cósmico a respeito do que viria a acontecer nos anos seguintes: não uma guerra, mas uma pandemia que exige de nós não apenas as batatas que garantem a sobrevivência individual mas o espírito de coletividade que permite enfrentar os piores tipos de calamidade.
Em 2021, nunca foi tão importante exercitar a fleuma britânica de tentar manter a calma e tocar a vida mesmo quando uma bomba ameaça desabar sobre o seu telhado no meio da noite. Mas é preciso atualizar o mais conhecido slogan de resiliência do século 20 para as urgências do presente: Keep Calm, Carry On, mas não esqueça de usar máscaras e ficar em casa se puder.