A obrigatoriedade da meia-entrada lembra aquele meme "começo do sonho /deu tudo errado", que contrasta expectativa e realidade. Idealmente – no sonho – é bonita a ideia de facilitar o acesso à cultura para estudantes, idosos, jovens de baixa renda e portadores de deficiência. Na prática, "deu tudo errado". Um espetáculo que custa R$ 20 não passa a custar R$ 10 porque a lei assim o definiu: alguém paga a conta. O jeitinho para driblar o desconto tem sido aumentar o ingresso para R$ 40, o que além de trocar seis por meia dúzia ainda cria a sensação de que o benefício é desfrutado indevidamente por estudantes e idosos que poderiam pagar. Ou seja: é injusto, ineficiente e prejudica o setor cultural.
A imunidade tributária sobre livros também é uma estratégia de incentivo à cultura, mas funciona melhor. Não resolve o agudo déficit de leitores do país, mas ajuda a manter a diversidade do setor editorial e tem algum efeito sobre preços. O "começo do sonho" remonta a 1946, quando Jorge Amado, então deputado constituinte, apresentou a emenda que criava a isenção de tributos para importação de papel para livros e jornais – mantida mais tarde nas Constituições de 1967 e 1988. Mesmo imune a impostos, o livro continuava sujeito a tributos com destinação específica, mas, desde 2004, paga alíquota zero de PIS e Cofins.
Em 2020, o "deu tudo errado" é o projeto de reforma tributária encaminhado ao Congresso pelo ministro Paulo Guedes – que, entre outras mudanças, pretende eliminar as isenções de imposto sobre os livros. Em um país com um mercado editorial fragilizado pela crise econômica e com políticas erráticas de incentivo à leitura desde sempre, a nova taxação de 12% cairia como um palito de fósforo aceso sobre uma pilha de papel seco.
A lógica por trás da proposta é a de que quem compra livros é rico e pode pagar mais. O raciocínio não é apenas equivocado, mas canalha. No Brasil, nem os ricos compram tantos livros quanto seria necessário para que o mercado editorial funcionasse a todo vapor sem apoio de políticas públicas. Brasileiros leem pouco e isso se reflete no preço dos livros, no número de editoras e livrarias, na variedade de títulos e autores, na falta de bibliotecas nas escolas, na qualidade da educação… Se os livros ficarem mais caros (cálculos apontam para um aumento de até 20% nos preços com a nova taxação), vamos ler menos ainda.
A leitura produz um tipo de riqueza que costuma ser invisível a burocratas de poucas luzes, mas se for realmente indispensável acabar com as imunidades tributárias, sugiro começar por igrejas e templos religiosos – que não apenas foram poupados por Paulo Guedes na reforma como estão se mobilizando para ampliar ainda mais seus benefícios fiscais. O "começo do sonho" do governo Bolsonaro é que o único livro lido no Brasil seja a Bíblia. Mas, se tudo der certo, vai dar tudo errado.