Nunca fomos tão obcecados pela ideia de “caráter” – e ao mesmo tempo tão confusos a respeito do sentido da palavra. Esse é o ponto de partida do livro Character – A history of a cultural obsession, de Marjorie Garber, lançado há pouco nos Estados Unidos e ainda sem tradução no Brasil.
Caráter é escolha ou destino? Qual a diferença entre caráter e personalidade? O que a literatura, a filosofia e a psicanálise podem nos ensinar a respeito? Garber, especialista em Shakespeare, tenta responder a essas e outras questões usando exemplos extraídos da ficção, mas também do noticiário recente. “Você não se dá conta de quanto o caráter é importante nos postos mais altos até ter alguém sem nenhum no comando do país”, anotou um congressista americano no pedido de impeachment do presidente Donald Trump.
Pois é.
A sensibilidade moderna costuma associar o caráter a uma espécie de essência interior fixa. Imaginamos o mau-caráter como um sujeito sem conserto, diferente de nós não apenas no que sente e pensa, mas em todos os outros aspectos. (O cafajeste é da outra tribo, nunca da nossa.) Aristóteles, ao contrário, enfatizava a noção de que o caráter resulta de escolhas morais deliberadas, que se expressam na linguagem e no comportamento. Ou seja, pode ser cultivado. A ideia está por trás de toda a literatura de autoajuda e até do movimento dos escoteiros, descrito por seu fundador, Robert Baden-Powell, como uma “fábrica de caracteres”. Para a psicanálise, traços de caráter podem resultar de uma coleção de mecanismos de defesa incontroláveis. De qualquer forma, essa tensão entre o que é inato e o que pode ser aprendido parece estar sempre presente quando se busca uma definição.
O assunto ganha relevância quando nos damos conta de que boa parte de tudo o que acontece nas redes sociais está relacionado, de alguma forma, ao julgamento do caráter alheio. Nesse ambiente em que todos são juízes, atores e espectadores ao mesmo tempo, tanto a honra quanto a infâmia podem rapidamente se transformar em performance. De um lado, o drama da superioridade moral dos que acreditam que estão sempre do lado certo. Do outro, a tragicomédia estrelada por quem percebeu que, quanto mais deliberadamente desprezível e imoral for seu comportamento, mais admiradores serão conquistados.