Uma obra de arte é sempre um convite para observar o mundo a partir da sensibilidade alheia. Ainda que alguns artistas consigam criar narrativas geniais que têm pouco ou nada a ver com suas próprias experiências, fatores como geração, nacionalidade, gênero, etnia ou origem social sempre deixam algum tipo de rastro no trabalho do artista. Flaubert dizia que Madame Bovary era ele - e não estava brincando. Literatura é invenção, mas também é observação e contexto. Por mais genial que Flaubert fosse, jamais seria capaz de descrever os tipos e as paisagens do Rio de Janeiro como, por exemplo, Machado de Assis. Há coisas no Rio que só um carioca é capaz de ver ou deixar de ver. Nenhuma das adúlteras famosas da literatura do século 19 foi criada por uma escritora, o que nos leva a imaginar como uma mulher contaria uma história desse tipo. Infelizmente, poucas mulheres escreviam na época de Flaubert e mais raras ainda eram as que encontravam editores ou leitores interessados em saber o que elas tinham para dizer.
O que sabemos hoje, e não sabíamos naquela época, é que quanto mais diversas as origens e os perfis dos artistas produzindo, mais ricas e complexas se tornam as leituras das realidades disponíveis. É muito bom aderir ao ponto de vista de alguém que parece expressar exatamente o que sentimos porque viveu experiências parecidas com as nossas, mas mais surpreendente ainda é viajar para territórios desconhecidos e descobrir, em meio a contextos completamente diferentes, algo que nos parece familiar. Nada do que é humano deveria nos ser estranho.
O debate sobre diversidade e representatividade na arte desembarcou com algum atraso no Brasil, mas chegou para ficar. Não há caminho de volta, haja o que houver no nosso futuro político próximo. Foi nesse ambiente que surgiu a mobilização em torno da eleição da escritora mineira Conceição Evaristo para a vaga da Academia Brasileira de Letras (ABL) aberta com a morte do cineasta Nelson Pereira dos Santos, em abril. Uma petição com cerca de 25 mil assinaturas defendeu a importância de uma escritora negra ser aceita entre os imortais, mas ela acabou derrotada pelo cineasta Cacá Diegues. A escolha era previsível. A ABL é uma instituição vetusta que odeia pressões externas e não tem pressa em assimilar as mudanças que acontecem fora do Petit Trianon. (Levou quase 70 anos para os imortais aceitarem uma mulher no clube - a escritora Raquel de Queiroz, em 1977 - e hoje elas são apenas cinco dos 40 acadêmicos.)
Apesar do aparente anacronismo, a ABL é um símbolo, e os símbolos às vezes são importantes - o que explica que um autor como Paulo Coelho tenha se desdobrado para conquistar uma vaga entre os imortais quando já era rico e famoso no mundo todo. Mas o fato é que a Academia Brasileira de Letras tem pouco ou nada a ver com o que as pessoas leem ou mesmo com o que acontece em eventos literários Brasil afora. Em festivais como a Flip, em Paraty, Conceição Evaristo é uma celebridade, adorada por leitores que fazem fila para comprar seus livros e ouvir o que ela tem a dizer. A mudança de cultura que realmente importa é aquela que acontece na cabeceira dos leitores, não na ABL.