Temos argumentos de sobra para atribuir aos nossos pais boa parte dos nossos sucessos e fracassos. Além da genética, são eles que nos fornecem o primeiro kit básico de sobrevivência sobre a Terra – a casa, a língua, os modos, as manias. Pelo resto da vida, podemos alimentar a fantasia de que seríamos pessoas muito melhores se nossa infância tivesse sido diferente, se nossos pais tivessem sido mais ricos, mais amorosos, mais cultos, mais presentes – ou qualquer outra coisa que pareça nos faltar no momento.
A certa altura da vida, começamos a jogar parte do peso da nossa existência sobre os ombros das pessoas por quem nos apaixonamos e com quem dividimos a nossa história. Por um grande amor, somos capazes de desenvolver habilidades e talentos nunca imaginados, assim como podemos abandonar (ou tentar abandonar) vícios e virtudes trazidos de casa – e a própria fantasia de que uma determinada pessoa pode nos aperfeiçoar ou suprir algo que não recebemos em casa costuma dar início a algumas paixões. Quando o amor acaba, porém, cobramos a conta não apenas das fantasias não realizadas, mas o saldo negativo de tudo aquilo que acreditamos que poderíamos ter feito, ou sido, se não estivéssemos tão distraídos tentando fazer aquele namoro ou casamento funcionar.
Costumamos ser bem mais desencanados com relação aos nossos melhores amigos. Talvez porque, de início, não colocamos tantas expectativas assim em uma amizade. Amigos entram nas nossas vidas sem certidão de nascimento ou casamento, cumprindo um ritual de aproximação baseado exclusivamente em afinidades espontâneas muitas vezes difíceis de explicar racionalmente. Quando minha filha era pequena, gostava de observar os pequenos grupos que se formavam na escolinha, imaginando o que levava duas meninas de dois ou três anos a se escolherem, entre tantas tão parecidas, como as melhores e mais fiéis companheiras. O cabelo? O sorriso? Um gesto?
Tenho amigos de infância, de adolescência, de tempos de faculdade, de trabalho. Quando penso na influência que tiveram na minha vida, em como cada um deles é responsável, em parte, por muito daquilo que eu sou hoje, percebo que os amigos, como a família e os amores, são cartas que recebemos do destino – tão importantes e decisivas para as nossas vidas e as nossas escolhas futuras quanto os laços de sangue ou conjugais.
Apesar da importância do nosso círculo de amizades na formação do nosso caráter e dos nossos gostos e no equilíbrio geral da nossa economia afetiva, os amigos não têm, me parece, a atenção merecida na ficção – embora uma amizade tenha inspirado um dos ensaios mais bonitos de Montaigne, o capítulo intitulado Da Amizade, em que homenageia um amigo que acaba de morrer com um dos textos mais profundos sobre o sentimento que une duas pessoas que desenvolvem afinidades de espírito e de afetos ("porque era ele, porque era eu").
Sempre achei que faltavam livros e filmes falando da potência de transformação de uma amizade, de como um encontro com um amigo pode ajudar a definir a profissão que você escolheu, a pessoa com quem se casou, o candidato em quem vota. Essa lacuna foi preenchida, em parte, pelos livros da escritora italiana Elena Ferrante, na chamada Tetralogia Napolitana (A Amiga Genial, História do Novo Sobrenome, História de Quem Foge e de Quem Fica e História da Menina Perdida, este último a ser lançado no Brasil ainda neste primeiro semestre). Não, Ferrante não ensina como fazer amigos e influenciar pessoas, mas mostra como um grande amigo pode mudar o seu destino tanto quanto um grande amor. Ou mais.