Na mesma semana em que o governo Sartori anunciou a proposta de extinção da Fundação Piratini, que prevê o desligamento de 241 funcionários ligados à TVE e à FM Cultura, Chico Buarque pediu que a canção Roda Viva fosse retirada da abertura do programa homônimo produzido pela TV Cultura de São Paulo desde 1986. É uma coincidência que dá o que pensar.
Durante anos, a TV Cultura foi motivo de orgulho nacional. Criada durante a ditadura militar, em 1969, a Cultura trouxe para o Brasil o conceito de TV pública, nos moldes da PBS americana e da BBC britânica. O desafio não era simples, mesmo depois da redemocratização. Por princípio, uma emissora desse tipo existe para que a qualidade e o interesse público contem mais do que a lógica de mercado, mas é preciso conseguir tornar-se relevante sem perder a independência da "roda viva" que a sustenta: os diferentes governos, com seus diferentes interesses e visões de mundo. Quanto mais sustentável e independente, melhor e mais relevante a programação – equação quase perfeita na TV Cultura, pelo menos entre 1985 e 1995. A crise bateu forte em 2003, quando 250 funcionários foram demitidos, e se arrasta desde então. Em 2016, a maior parte da programação infantil é formada por enlatados – e o Roda Viva já havia perdido boa parte da relevância e da independência jornalística muito antes de perder a música de abertura.
Em escala mais modesta, nossa TVE, criada em 1974, também teve seus anos de ouro, com programas que marcaram época como Pra Começo de Conversa, Quizumba, Radar, Estação Cultura e muitos outros levados ao ar, nos últimos anos, graças ao esforço de funcionários, muitas vezes trabalhando no limite da precariedade.
Em meio ao acalorado (e triste) debate dos últimos dias, gostaria de chamar a atenção para dois aspectos: 1) A TV pública de qualidade enriquece a inteligência e o debate público. Testa linguagens, dá visibilidade aos artistas, abre espaço para o novo, prioriza a qualidade mesmo quando os interesses do mercado a ignoram. 2) Todo o item 1, para se constituir e se manter, depende de um modelo de administração que proteja a emissora das trocas de governos, dos administradores incompetentes, dos lobbies, da manipulação política, da indiferença.
A TVE começou a ser destruída anos atrás. Foi sendo morta, lenta e tristemente, por sucessivos governos estaduais e pela falta de interesse dos gaúchos em implantar um modelo administrativo que protegesse sua emissora pública da roda viva dos governos e a tornasse sustentável. Sartori é apenas o último de uma linhagem de governadores que não sabiam o que fazer com a TVE.
Nunca, na minha vida adulta, os versos de Chico Buarque fizeram tanto sentido: "Tem dias que a gente se sente como quem partiu ou morreu. A gente estancou de repente, ou foi o mundo então que cresceu?".