Existem músicas que chegam na hora certa. Foi assim com Changes, canção do álbum Hunky Dory, de David Bowie, lançado em 1971. Quinze anos mais tarde, aos 19, eu estava morando em San Francisco, nos Estados Unidos, e Changes foi a trilha sonora daquele que eu lembraria, no futuro, como o primeiro ano do resto da minha vida (como no título de um filme que fazia muito sucesso na época). "Turn and face the strange" foi o meu verso-mantra em 1986, morando fora de casa pela primeira vez, longe dos pais e do país. Havia algo de doce e vibrante naquela música de um cantor do qual eu nunca tinha ouvido falar antes que explodia em energia e confiança a cada nova audição, efeito reforçado por um refrão que grudava no ouvido e uma letra que celebrava a inquietação permanente – na vida como na arte. Eu não sabia ainda, mas Changes era praticamente uma receita de sucesso no formato de música. Até hoje, é uma das canções mais populares de David Bowie.
Nas últimas horas, desde que a notícia da morte do músico tomou conta das redes sociais, fãs de todas as partes do mundo compartilharam pequenos "momentos Bowie" como esse, fragmentos biográficos ligados de alguma forma a sua obra – uma canção, um verso, a cena de um filme, uma fotografia. Reside talvez nessa multiplicidade de referências, em diferentes áreas, e na amplitude do alcance, no espaço e no tempo, de sua influência, o traço que distingue um grande artista de um ícone. Ignorando limites geográficos e fronteiras geracionais, Bowie também ultrapassou a esfera do mero sucesso musical - outros nomes de sua geração terão vendido muito mais discos e tocado para mais gente. O que gravou seu nome na história da cultura pop do século 20 foi uma rara combinação de música e atitude, obra e biografia, forma e conteúdo.
Não chega a ser surpreendente que Bowie tenha decidido encenar sua saída de cena como um último espetáculo. A doença que o matou lentamente lhe deu a chance de escolher seu grand finale. Cheio de referências à morte e à ressurreição, o perturbador vídeo da música Lazarus, lançado na semana passada, ganhou novo significado nesta segunda-feira: "Look up here, I'm in heaven / I've got scars that can't be seen / I've got drama, can't be stolen / Everybody knows me now". David Bowie deixou pronto o próprio obituário, mas do seu jeito - e o que ele tinha a dizer falou mais alto do que todas as análises dos especialistas a respeito da importância do seu legado.
Ao contrário do personagem bíblico, homem que volta dos mortos por milagre, Mr. Bowie jamais abandonou o reino dos vivos e artisticamente relevantes. Apenas encarou sua última metamorfose. Com a elegância de sempre.