Em tempos de retrospectivas, temos que admitir: as coletivas do deputado Eduardo Cunha nos corredores do Congresso foram a grande atração do ano na televisão brasileira. As diabólicas armações da facção criminosa de A Regra do Jogo e a fé-espetáculo de Os Dez Mandamentos foram meros aperitivos para o reality show político que tomou conta dos telejornais nos últimos meses. Pensando bem, Eduardo Cunha Show foi tudo ao mesmo tempo agora: Regra do Jogo e Dez Mandamentos, mas também Verdades Secretas, Masterchef, Mad Men e Pé na Cova.
Nada mesmerizou mais o telespectador brasileiro neste ano do que aquele quadro fixo dos telejornais em que as câmeras acompanhavam o caminhar descuidado do presidente da Câmara rumo ao buquê de microfones que o aguardava para mais uma coletiva. Nenhuma pergunta o tirava do sério, nenhuma denúncia grave divulgada no mesmo dia o constrangia - e nem quando notas falsas voaram ao seu redor acusou o golpe. A impressão é de que, mesmo que uma bomba explodisse ao seu lado, ele continuaria recitando seus incisos como se nada estivesse acontecendo.
Se charme não é o forte do nosso showman, roteiro, interpretação e figurino (estilo "elegância não dá voto") são impecáveis na composição da imagem de um político-clichê, daqueles que levam a sério a missão de colocar os próprios interesses acima de tudo - e nunca acertam na escolha da gravata. Se há alguma concessão à sua humanidade, um deslize que parece fora do seu controle, é aquela saliva grudada nos lábios que insiste em se fazer presente quando as perguntas dos jornalistas se alongam além da conta. (Muitos, como eu, ficam tão hipnotizados pelos perdigotos rebeldes, que mal conseguem prestar atenção no que ele está dizendo...)
A ficção que um dia decida recriá-lo, no cinema ou na literatura, e mesmo os livros de História que revisem seu papel na crise de 2015 devem fazer justiça ao seu maior talento: a arte de invocar a ordem para instaurar a desordem. Citando leis, incisos, parágrafos, emendas e jurisprudências, como um religioso evoca seu livro sagrado inventando interpretações sempre adaptáveis às novas circunstâncias, Cunha é um fundamentalista do regimento interno, um fanático das tecnicalidades, um tarado da minúcia. Usar a lei como instrumento de intimidação e não de justiça não chega a ser uma novidade no Brasil, mas pouca gente se aprofundou tanto na lei para poder desvirtuá-la.
Que Cunha Show e seus incansáveis roteiristas recebam por todos esses feitos espetaculares tudo aquilo que merecem.
É o que o país lhes deseja.
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