Se toda obra-prima reflete a alma do artista, o projeto de lei 5.069/13, de autoria do deputado Eduardo Cunha, espelha seu caráter, seu pensamento e sua contribuição para a construção do Brasil do futuro - que vem a ser igualzinho ao do passado, só que um pouco pior.
Em linhas gerais, o projeto aprovado na Comissão de Constituição e Justiça da Câmara na semana passada torna ainda mais humilhante e penoso o percurso de mulheres vítimas de estupro que buscam o caminho do aborto legal. E quem são elas? Meninas de 12 ou 13 anos, estupradas por homens da família ou conhecidos, e muitas vezes obrigadas a deixar a escola depois de engravidar - repetindo a sina de mães e avós iletradas. São mães com filhos pequenos atacadas na rua à noite, voltando do trabalho, porque a rua não oferece segurança e o transporte não é confiável. São jovens começando a faculdade ou um emprego novo, cheias de planos e sonhos para o futuro. Mulheres como eu, minha filha, minhas amigas, minhas vizinhas, minhas colegas de trabalho, com uma diferença essencial: ao contrário de nós, mulheres de classe média, seu destino e suas vidas dependem do atendimento oferecido pelo Estado. Um atendimento já precário que o projeto de Eduardo Cunha torna ainda pior e mais difícil.
Penalizar mulheres pobres vítimas de violência sexual, além de retrocesso em uma legislação já atrasada em relação a outros países, demonstra um nível de perversidade e inconsequência que mesmo no Brasil parece intolerável. Mas o que instala esse projeto no plano do escárnio público é o fato de essa monstruosidade vir empacotada em um discurso moralista que não se sustenta nem mesmo como farsa. Não estamos lidando aqui com um movimento conservador genuíno, do qual poderíamos talvez republicanamente discordar, mas com políticos corruptos que se beneficiam da fé alheia vendendo a ideia de que é legítimo impor uma visão de mundo de viés religioso a um Estado laico. Ou seja: estamos debatendo moral com quem nem sequer entende o sentido da palavra.
No livro A Máquina de Fazer Espanhóis, do escritor português Valter Hugo Mãe, o narrador diz a certa altura que Portugal se transformou em uma máquina especializada em fazer seus habitantes quererem sair do país - uma "máquina de fazer espanhóis", já que muitos emigram para a Espanha. Com o PL 5.069/13, que ultraja homens e mulheres igualmente, Cunha não vai nos fazer sair do Brasil. Mas pode, sem querer, ter conseguido inventar a máquina de fazer feministas.
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