Eu fui cobaia dos meus irmãos.
Aliás, todo irmão menor é dublê dos maiores. Para fazer o proibido. Para ir na frente na hora da molecagem. Para testar os limites. Para dividir os castigos.
Meu irmão Rodrigo unicamente me procurava para seus experimentos loucos e imprevisíveis.
Era o cientista da casa, o leitor precoce das civilizações Maia e Asteca, o observador de estrelas, o perito dos consertos de aparelhos eletrônicos.
Apresentava uma aura de enciclopédia, só que comigo saía das páginas dos manuais e se arriscava no precipício e vertigem das folhas em branco.
Quem dera ter comido sopa de folhas dele. Quem dera ter comido gafanhotos ou formigas. Quem dera que as interações tivessem sido tão inofensivas.
Com dois anos de diferença, ele me convocava como o seu parceiro ideal de testes.
Lembro um episódio no fim dos anos 70. Rodrigo recém tinha aprendido a andar de bicicleta, só que eu jurava que ele já sabia.
Ele me convidou para a garupa de sua Caloi — a bicicleta vermelha tinha freios nos pés, não no volante.
Tratava-se de uma honra ser chamado para passear.
Subimos ao início da lomba da Mostardeiro. Não era qualquer ladeira, apenas perdia em extensão e medo para a Lucas de Oliveira.
Eu exultava pela minha condição de carona, como um escolhido para uma missão secreta. Nem acreditei quando me recrutou generosamente para a sua aventura.
Ele me orientou:
— Será igual a uma montanha-russa, com a diferença de que é de graça. Para curtir o momento, feche os olhos, sinta o vento nos cabelos!
Naquela época, eu era um loiro cabeludo, tipo Cléo, jogador que atuava no Internacional.
Descemos com muita força. Veio um violento frio na barriga, um choque de gravidade.
As mechas foram para trás, numa sensação de liberdade, a cara sendo lavada pelo minuano num dia típico de inverno.
De repente, noto a bicicleta desgovernada, bambeando, abro os olhos, saio do transe, e cadê meu irmão?
Eu estava sozinho. Desesperadamente desamparado. Um reboque solto de um carro em alta velocidade.
Explodi numa árvore na entrada do Parcão. No dia seguinte, apareci na escola exibindo mercúrio vermelho pelo corpo inteiro.
Meu irmão jura até hoje que gritou para que eu pulasse. Eu não me recordo disso. Acho que não deu tempo de ele falar.
Mas, da mesma forma que ele me colocava em perigo na privacidade dos laços, a partir de suas invenções e iniciativas impetuosas, ele era o primeiro a me defender na rua quando zombavam de mim. Não me deixava apanhar de ninguém, ainda que precisasse sofrer junto.
Os irmãos são, simultaneamente, nossos heróis e nossos foras da lei, nossos salvadores e nossos bandoleiros. Em nossa memória, cumprem os dois papéis antagônicos.
Sentimos por eles um amor cheio de raiva, ou uma raiva cheia de doçura. Não dá para ter uma opinião formada.