Sou devoto da pizza Califórnia. Gosto daquele doce com salgado. Dos extremos combinados. Daquela surpresa suave de pomar no queijo derretido. Do molho vermelho tingindo levemente as frutas.
Lembro-me da minha avó materna pela pizza Califórnia e pela cerveja preta Malzbier. Minha saudade tem esses aromas. Como ela ficava feliz quando as suas duas preferências se encontravam na mesa. Era o momento em que dispensava o avental e mais festejava a vida.
Tanto que mantenho o vínculo familiar, o legado, com os meus filhos. Toda noite de terça-feira, seguimos para a nossa tradicional pizzaria na avenida Nova York. Sentamos nos mesmos lugares e pedimos sempre os mesmos sabores, incluindo a Califórnia. O garçom já nos conhece de cor. Nem mais anota o pedido.
Só que, na última semana, recebi a notícia triste de que a Califórnia saiu do cardápio do restaurante. Há agora um desfalque insubstituível na nossa circunferência gigante. A pizza de quatro queijos perdeu sua vizinha.
Perguntei o motivo do corte. O gerente alegou que éramos os únicos a comê-la. Ninguém mais a solicitava. As latas dos condimentos estragavam, apesar da longa durabilidade de dois anos.
Sofro com a gradual extinção de uma cultura gastronômica, dilapidando a herança do meu paladar.
A Califórnia era um clássico gaúcho, com presunto, queijo, figos, abacaxi e pêssego em calda.
Não existe em outro estado: nem um pouco tradicional no Sudeste, desconhecida no Nordeste, extravagante no Centro-Oeste e ausente no Norte do Brasil.
Cada vez mais se transforma em um produto de nostalgia, fora de linha, evocado pelos mais antigos.
Sua saída dará espaço para quem? Para o óbvio: Nutella. Para mais uma pizza de Nutella. Já imagino a novidade: pistache com Nutella. Tadinhos dos pizzaiolos italianos. O que a Itália nos deu, a Itália nos tira. Maldita pasta Gianduia.
A Nutella virou uma febre, uma modinha que não termina, um contágio cultural em 75 países. Ela tem a textura pegajosa e viciante da pasta de amendoim.
Não há limites para a sua expansão territorial, assumindo o império do açúcar. Tirou o emprego do Mu-Mu dos churros, substituiu a tradicional cobertura de chocolate do sorvete, defenestrou o Petit Gateau, roubou a companhia do bolinho de chuva. E está agora no bolo de banana, nos brownies, nos donuts, nas panquecas, no pão de canela, no milk-shake. Até desfigurou a nossa cuca.
É a vilã que matou a minha pizza Califórnia. E continua fazendo vítimas em nossa culinária. E todos amam a Nutella, exaltam o seu feitiço, prestam homenagem à carrasca no cacetinho matinal, com facas lambuzadas do dominante creme de avelã com cacau, óleo de palma e leite.
A gourmetização é perigosa. Transforma sua personalidade pouco a pouco. Você vai trocando o poncho pelo pulôver nos ombros, o banho de sanga pela jacuzzi, o rancho pelo apartamento, o pelego pelo edredom. O próximo passo de desapego será preparar costelão na air fryer.
Mas nunca me tornarei um gaúcho Nutella. Minhas raízes são fundas e amargas.