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Poeta, cronista e jornalista, autor de 48 livros entre crônicas, poesia, reportagem e infanto-juvenil, duas vezes prêmio Jabuti.

Cotidiano
Opinião

A virada de chave para amar

O outro pode não ter a mesma percepção que a sua a respeito do que é bom receber

Fabrício Carpinejar

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Você precisa entender o que o outro entende como amor. Pois ele não tem a mesma percepção que a sua.

Ao lhe preparar uma surpresa, você jura que é para o bem dele, mas talvez esteja pensando unicamente em sua própria felicidade.

Quando você vira essa chave, entra em qualquer porta, em qualquer coração.

Antes eu oferecia o que me agradava, o que correspondia aos meus anseios, o que me satisfazia. Eu dava o que eu queria receber.

No último Natal, por exemplo, preparei a ceia para a minha mãe: vários pratos e assados, farofas e molhos, com direito a duas tortas de sobremesa.

Até esse ponto, ainda estava contemplando as minhas expectativas, não as dela.

Eu me dei conta de que nada adiantaria, por mais que a refeição fosse deliciosa, por mais que os insumos fossem de primeira, por mais que o vinho fosse o ideal, se eu não deixasse a sua cozinha limpa.

Minha mãe não fica feliz especificamente com o jantar, e sim com o conjunto da obra.

É o jantar, mais a louça, mais o lixo recolhido, mais o pano no fogão, mais o piso varrido, mais as sobras acondicionadas com plástico-filme na geladeira.

Para arrancar o sorriso da minha mãe, eu devo ocupar o seu espaço e também desocupar. Devo saber chegar e também saber sair.

Tudo precisa estar lavado, com a missão de manter a cozinha do jeito cristalino e límpido que eu a herdei.

O que significa servir, lavar, secar, guardar. A abolição de uma dessas etapas já conspurca a credibilidade da minha visita.

O perfeccionismo materno tem a sua razão. Afinal, presente que dá trabalho não pode ser chamado de presente.

Não há sentido em cozinhar para alguém se a pia vira um lodaçal, um pântano, com panelas sujas, louça empilhada e um exército de copos para ensaboar.

Se você apenas abastou a mesa, abandonou o seu posto no meio. As duas ou três horas sobre o vapor e a fumaça das suas misturas e temperos não equivalem à faxina que legou para a sua companhia na manhã seguinte.

Jamais será um bom trato "eu cozinho, você lava". É uma troca injusta.

Cozinhar é igualmente sumir com os vestígios da sua presença. Não cabe, de modo nenhum, denunciar os seus truques, a sua mágica, mostrar o que usou e como fez expondo os resquícios das frigideiras.

A verdadeira proeza é ninguém conseguir entender as etapas da sua receita. A ideia é até supor, diante da ordem, que a comida foi encomendada.

O cuidado envolve o precioso alimento espiritual de não transferir tarefas.

No fim da ceia, minha mãe apareceu para espiar o estado de sua cozinha. Quando ela viu cada objeto em seu respectivo lugar, suspirou de alívio e, só nesse instante, reconheceu-se pronta para me agradecer com um longo abraço.

Eu lhe adverti:

— Mas, mãe, estou todo suado.

Ela buscava mesmo celebrar o meu suor. Suor é amor mais do que o riso, mais do que as lágrimas.

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