Palavras são vivas. Mudam de acordo com a época. Assim sendo, todo dicionário está desatualizado e desinformado logo que é publicado.
Não tem como conter a mutação de vocábulos, que adquirem novos sentidos à medida que são usados.
Sou escritor, e lido cada vez mais como mediador linguístico, na fronteira entre o popular e o erudito, na busca pela acepção mais definitiva do momento do signo.
Palavras são vasos. Colocamos nossa experiência dentro delas, nossa carga cultural, nossa visão de mundo. Não vasos de porcelana, mas sanguíneos, conduzindo o sangue de nossas vivências.
Nesta semana, escrevi um texto sobre despedidas digitais, em que mencionei que o cantor sertanejo João Carreiro, infelizmente falecido após cirurgia cardíaca, era “polêmico”.
Foi tamanha a enxurrada de comentários questionando a pertinência do “polêmico”, que suprimi o adjetivo.
O foco da crônica — o adeus cristalizado pelas redes sociais — havia se perdido na polêmica do “polêmico”.
Os leitores receberam o “polêmico” como uma restrição de comportamento, quando revelava que o artista expunha, sem medo e sem filtros, numa postura sincera, contra tudo e contra todos, a favor somente de si mesmo, seu modo de pensar em seus versos.
Chorão foi polêmico. Elis Regina foi polêmica. Tim Maia foi polêmico. Cada um travou as suas guerras com a opinião pública.
Não significa um desmerecimento, porém aponta para um fato biográfico.
Da mesma forma, Anitta é polêmica, independentemente de apreciarmos ou não as suas músicas. Ela provoca debates, suscita reflexões a respeito da liberdade e da sexualidade.
O que pode ser compreendido como um elogio por alguns será visto como ofensa por outros. Quem é transgressor na moda e nas ideias gostará de ser polêmico. Quem é mais conservador não enxergará a nominação pelo viés otimista.
Eu sou polêmico, acabei de ser polêmico.
É impossível impedir o preenchimento ideológico da palavra pelo leitor. Vai acontecer. E não se pode sofrer por isso, senão você enlouquece e não escreve mais nada.
Se a pessoa for de direita, você será acusado de “esquerdopata” ao adotar “polêmico”. Se a pessoa for de esquerda, será xingado de “reacionário”. Por mais que não tenha nenhum contexto explícito de política.
O subentendido reina no discurso hoje em dia. Você não lê o que está escrito, você procura, nas entrelinhas, o seu próprio conteúdo, suas preocupações e aflições.
As reações passionais demonstram que não estamos lidando bem com a inexistência de unanimidades na era de exposição virtual. Pois, se você é polêmico, não é unânime.
Entretanto ninguém é unânime. Em algum momento de sua vida, famoso ou não, enfrentará oposição.
Caso estivessem vivos e postando nas redes sociais, nem Carlos Drummond de Andrade, nem Clarice Lispector sobreviveriam às farpas do patrulhamento diário.
Sequer nossos maiores cantores, na faixa octogenária — Chico Buarque, Caetano Veloso e Gilberto Gil —, encontram-se blindados do mal-estar da civilização. Arcam com um coro de descontentes que misturam indevidamente suas declarações circunstanciais com a inconsútil obra.
Talvez não se deva mais perguntar “o que o autor quer dizer?”, mas “o que eu desejo ler?”.