Todo mundo sofreu com os vídeos de Marília Mendonça antes do voo fatal no dia 5 de novembro de 2021, na zona rural da cidade mineira de Piedade de Caratinga.
Aparecia sorridente embarcando para shows que faria no interior de Minas Gerais, empurrando a sua mala vermelha e, em seguida, comendo maçã dentro da aeronave.
Você vê a cantora tranquila no Instagram, ainda viva, ainda cheia de planos e projetos, e a notícia do seu falecimento já está circulando ao mesmo tempo. Ou seja, os stories, apesar de suas efêmeras 24h, podem durar ironicamente mais do que uma existência.
É esse delay entre a morte e a vida que nos paralisa. Qualquer um, na época do desastre, mergulhou num transe infantil e ingênuo de querer avisar Marília:
— Não entre aí!
Procuramos pressentimentos do fim na mínima palavra, na mais discreta nuance do rosto daquele que parte para nunca mais voltar.
Na última quarta-feira (3), morreu o cantor sertanejo João Carreiro, aos 41 anos. Natural de Cuiabá, reconhecido nos anos 2000 com a dupla João Carreiro e Capataz, teve suas canções em trilha sonora de novelas como Paraíso.
O artista não resistiu às complicações de uma cirurgia no coração. Encontrava-se internado em um hospital de Campo Grande para colocar uma válvula.
Em idêntica dinâmica, tivemos contato com uma gravação feita na véspera da cirurgia: o sertanejo, bem-humorado, brincou com a camisola floreada hospitalar e disse que passaria uns dias longe das redes sociais.
Mal sabia que passaria longe de tudo. “Papai do Céu” — assim ele mencionou a Deus na conversa com os fãs — logo o buscou.
Talvez houvesse um lampejo do medo quando ele falou:
— Se eu empacotar, não quero saber dessa roupinha aqui não. Não combinou muito comigo isso aqui não.
Mas, de qualquer forma, o pânico vinha disfarçado de brincadeira, de implicância, da esperança de uma provocação.
Com as redes sociais, existe um fenômeno recente do registro da despedida, dos bilhetes filmados do adeus. Viramos videntes da morte, que acontece sorrateiramente na plenitude da vida.
Não estávamos acostumados com o minuto a minuto das celebridades. É um reality show involuntário do apagar das luzes de uma trajetória.
Somos espectadores incrédulos dos últimos momentos de alguém.
Gostando ou não gostando da pessoa, os frames nos atingem em cheio, desestabilizando nossas certezas, profanando a nossa posteridade, esfregando a nossa vulnerabilidade, a nossa finitude, a nossa precariedade em nossos olhos atônitos.
Instaura-se uma incômoda compaixão, que parte da vítima e se estende ao que realizamos com o nosso presente: se somos felizes ou não, se aproveitamos a nossa duração aqui ou ficamos adiando os nossos sonhos.
Uma filmagem cotidiana, prosaica, torna-se premonitória, icônica e, inconscientemente, fúnebre.
Você assiste ao desfecho de uma voz, aos derradeiros instantes, percebendo que jamais anteveremos o nosso epílogo.
João Carreiro gargalhava, a despeito da delicadeza e gravidade do procedimento. Como imaginar que a intervenção não daria certo?
Ninguém acredita que vai morrer em breve. E morremos de susto várias vezes ao ano diante da telinha do celular.