Gibi é um instrumento. Pode ser ou não ser literatura. Assim como HQ. Assim como canções (a partir delas, o norte-americano Bob Dylan ganhou o Nobel de Literatura).
A literatura não deve ser reduzida pelo seu suporte. Nem o grafite, por exemplo. Ou alguém vai dizer que não é arte o que Kobra ou Os Gêmeos executam nas paredes dos edifícios? Pintura seria só o que vai na moldura de quadro? Convenhamos.
Há gibis que não são literários. Os de Mauricio de Sousa são, e representam excelente literatura infantil. Se fossem postos em texto corrido em livros, sem as tiras, sem os balões, sem os desenhos, ainda assim trariam histórias cativantes da Turma da Mônica.
Nem é o caso de categorizar como pré-literatura, são romances de formação em sua essência, com reviravoltas na trama, conflitos entre personagens e até suspense. A Mônica é inimiga e amiga de Cebolinha e Cascão, assim como estes têm duplo comportamento e vivem tramando um jeito de roubar o seu coelhinho.
O dilema veio à tona na semana passada devido a briga por uma vaga na Academia Brasileira de Letras (ABL).
O jornalista e diretor de TV e teatro, James Akel, de 69 anos, que disputa a cadeira número oito com o cartunista Mauricio de Sousa, disse que seu oponente não é escritor. Sua declaração reboou nas redes sociais: “gibi não é literatura”.
Ele falha enormemente ao desqualificar Mauricio, uma lenda dos quadrinhos brasileiros, com 64 anos de profissão desde o surgimento do cachorrinho Bidu da ponta do seu lápis.
Sua imensa popularidade é compatível ao seu talento de criador de universos.
Essa mania de ficar tirando o status de literatura da obra de alguém é um discurso de poder, jamais de literariedade. É uma postura excludente mais própria da inveja do que da análise crítica. É uma atitude de quem se senta no cânone e julga o que é válido ou não segundo regras de um anacrônico conservadorismo vernáculo.
Acredito que Akel tropeçou na hora de acertar o alvo. Sua tese talvez esteja levando em conta apenas uma pequena parcela de publicações, pois nem sempre gibi é literatura, mas, na maioria das vezes, seu exemplo se mostra totalmente equivocado.
Além do intocável Ziraldo para crianças, há maravilhosas produções para o público adulto, como as de Angeli, Laerte, Adão Iturrusgarai, Allan Sieber, Chico Caruso, entre tantas.
O meio não determina a qualidade. De igual forma, cartas, dependendo do conteúdo relevante, são capazes de apresentar um valor atemporal de escrita, mesmo que contenham um destinatário e uma data específica em seu cabeçalho. Epístolas formam uma herança poderosa, como a correspondência de Kafka ao pai ou a da freira portuguesa Mariana Alcoforado para o capitão Noël Bouton, conde de Saint Léger, a quem endereçou suas cinco cartas de amor.
Mauricio de Sousa merece a vaga na ABL (apesar de o filólogo Ricardo Cavaliere ser o favorito entre os imortais).
O autor paulista de mais de quatrocentos personagens inspirou várias gerações para a leitura. Das bancas de revistas, milhões de brasileiros chegaram à biblioteca. Foi uma iniciação para alfabetização e letramento que nem o MEC conseguiu ao longo da sua história.
Eu, particularmente, comecei a ler pelo círculo de amiguinhos de Mônica. Um dos meus sonhos da infância continua de pé: ter o metabolismo de Magali, comer e comer sem engordar. Não existe protagonista mais admirável, ainda mais para quem se encontra hoje na meia-idade e não sabe mais o que fazer com a barriga.