Você já imaginou o que seria a sua vida sem seus pais?
Ver aquele número no celular e não poder mandar mensagem?
Não mais contar com a possibilidade de visitá-los para roubar um colo e desabafar as mágoas?
Não mais ouvir seus conselhos na mateada?
Não reclamar que eles estão usando o dedo preguiçosamente como talher para apanhar o arroz na borda do prato?
Localizar algo de que eles gostam no comércio e não ter mais sentido comprar um presente?
Tenha no coração que seus pais não têm mais os pais deles quando se atrapalharem com uma tarefa simples
Sentir vontade de um abraço e se perceber impossibilitado de comunicar a saudade?
Agora pense nos seus pais envelhecidos de 75 anos, de 80 anos. Eles não têm mais pai e mãe. Seus avós morreram faz tempo.
Seus pais sofrem com a despedida de seus protetores. É como dormir sem a parte de cima da casa para os dias de tempestade, sem a bênção de seus velhos para acalmar as tormentas. É uma dor destelhada.
Não há quem olhe por eles assim como você é olhado com tamanho zelo por ambos.
A alma deles é um orfanato.
Não importa a idade avançada, seus lutos são de uma criança aprendendo a se virar sozinha, assumindo precocemente a responsabilidade pelos seus atos.
Tanto que eu acredito que só amadurecemos quando perdemos os pais. Quando a data da partida se consolida como um segundo aniversário.
É um vazio existencial que se descortina e fica para sempre. A vida jamais será a mesma. Carecerá de uma cola para ligar as peças de sua memória. Suas sensações virarão fantasmas, o vento se transformará numa voz, a chaleira apitando será uma campainha por dentro do peito. A rotina se abrirá ao sobrenatural com a materialidade de quem divide uma bergamota.
Tenha em mente que seus pais não têm mais os pais deles quando repetirem uma história.
Tenha noção de que seus pais não têm mais os pais deles quando esquecerem o que havia por dizer.
Tenha consciência de que seus pais não têm mais os pais deles quando telefonarem e você estiver prestes a recusar a ligação.
Tenha no coração que seus pais não têm mais os pais deles quando se atrapalharem com uma tarefa simples.
Tenha em seu horizonte de ideias que seus pais não têm mais os pais deles quando começarem a chorar, ou quando acordarem desanimados, ou quando reclamarem de tudo.
Não os condene, não os censure, não desapareça. Contenha a sua ânsia de se afastar para ter menos trabalho e preocupações.
Seja, portanto, mais paciente, mais compreensivo, mais generoso, mais amigo dos seus pais.
O silêncio deles é mais profundo do que o seu, a distração deles é mais violenta do que a sua, o suspiro deles é mais longo do que o seu.
Todo pesar é, no fundo, um apego. Você não poderá ocupar o lugar de quem partiu — estará postumamente preenchido —, mas pode se sentar próximo de seus pais para diminuir um pouquinho a falta que faz o passado.