Não temos ideia do quanto um cachorro pode mudar a nossa história, do quanto pode nos afastar da solidão e da depressão, do quanto a sua companhia inseparável, fiel e engraçada melhora o nosso humor.
A escritora Nélida Piñon, que morreu no último sábado (17), aos 85 anos, um dos maiores nomes da ficção latino-americana, a primeira brasileira a receber o mais importante prêmio espanhol de literatura, Príncipe de Astúrias, colocou suas duas cadelas como beneficiárias de seu testamento. A pinscher Suzy, de 13 anos, e a chihuahua Pilara, de três, são as novas proprietárias de quatro apartamentos que ficam em um prédio de luxo à beira da Lagoa Rodrigo de Freitas, no Rio de Janeiro, assim como passaram a ser as detentoras dos direitos autorais dos 25 livros de Nélida.
Antes que alguém levante o dedo e diga que é um absurdo indicar as cachorras como herdeiras em meio a tanta desigualdade e penúria social no país, é uma medida provisória para que seus bichinhos permaneçam sendo cuidados em sua ausência.
O cachorro converte. O cachorro é milagreiro. O cachorro é das causas impossíveis.
Somente após a morte dos animais é que os imóveis poderão ser vendidos. Em seguida, na linha sucessória, está Karla Vasconcelos, que foi acompanhante e responsável por Nélida nos seus últimos anos.
Além disso, ela será enterrada no mausoléu da Academia Brasileira de Letras, em companhia das cinzas do seu amado cachorro Gravetinho, morto aos 11 anos em 2017.
A paixão da escritora pelos seus mascotes explica um pouco o poder de apego dos cães.
O cachorro converte. O cachorro é milagreiro. O cachorro é das causas impossíveis.
Mesmo quem não gosta dele acaba gostando, enfeitiçado pelas suas travessuras.
É evitar a adoção que ele aparece para fazer você pensar diferente.
Os cachorreiros foram um dia pessoas que não cogitavam ter um cachorro em sua vida.
Sempre é assim, cachorro é do contra. Adora um desafio. Adora um temperamento difícil. Adora um gênio forte. Adora a superação.
Todo mundo que já usou alguma vez uma das justificativas abaixo mordeu a língua e abanou o rabo para o destino:
— Tadinho, vê-lo preso num apartamento.
— Teria cachorro se morasse numa casa.
— Viajo muito e não há com quem deixar.
— Não tenho tempo para passear.
— Eu é que vou acabar cuidando sozinho.
A preocupação com o bem-estar do cachorro já revela uma ligação espiritual com ele. Não é que você não queria, você achava que não podia cuidar e acaba se surpreendendo, pois é o cachorro que cuida de você.
Aquele que se opõe a trazer um peludinho para a família depois é quem mais se encanta por ele. Aquele que mais resiste no início mais se entrega no final. O cachorro vira aquele motivo para não se demorar na rua e voltar cedo para casa.
Você só se dá conta de que ama o cãozinho depois que ele morde o seu tênis predileto, e você perdoa. Depois que ele arrebenta a armação dos seus óculos, e você perdoa. Depois que ele fura o estofado do seu sofá, e você perdoa. Depois que ele transforma o seu celular em osso, e você perdoa. Depois que ele puxa o rolo de papel higiênico pela casa, e você perdoa. Depois que ele revira o lixo da cozinha, e você perdoa.
Você que nunca tinha perdoado ninguém, orgulhoso e teimoso desde sempre, aprende a ceder. E será menos intransigente com os filhos, com o cônjuge, com os pais, com os amigos. Apresenta-se mais tolerante diante de todos ao seu redor.
Porque nenhum bem material é maior do que a lealdade do cachorrinho festejando a sua chegada e lamentando a sua partida. Do que a felicidade contagiante dele ao dar piruetas pelo ar na hora de passear. Do que o aconchego discreto na cama, esperando não ser expulso. Do que o olhar piedoso e fixo pedindo para provar a sua comida. Do que o ataque de lambidas quando você está triste, levando as suas lágrimas embora.
Nélida Piñon, num gesto que soa como extravagante, só desejou agradecer as suas “meninas”. Não se preocupou com os seus bens materiais.