Ninguém esperava. Ninguém deduzia o fim. Ela estava em turnê com o show "As várias pontas de uma estrela", no qual revisitava grandes sucessos do cancioneiro popular (“Açaí", "Nada mais", "Sorte", “Lua de mel", entre outros). Tinha agenda pela Europa ainda a cumprir.
Ninguém imaginava que Gal Costa, uma das nossas maiores vozes, partiria de repente, de infarto, aos 77 anos.
Jamais estaríamos preparados para a sua morte, porque sequer cogitávamos um dia viver sem Gal.
A notícia nos pegou desprevenidos, como se fosse um boato, um erro, algo inverídico.
Só passaremos a acreditar na despedida quando aceitarmos a ausência. Isso pode nunca ocorrer.
Gal gera um vácuo eterno, tal cratera aberta por Elis em nosso coração nos anos 80.
Era um cristal desafiando os limites da montanha. Mito de Dionísio entre nós, celebrando o divino no humano. Havia nela uma doçura selvagem (jamais enjoativa), uma brisa refrescante no interior do furacão, uma alegria genuína associada aos frevos e às marchinhas de carnaval.
Quando ela balançava seus longos cachos, mudava de personalidade. Derramava eletricidade em cena.
Por mais que tenha bradado “É preciso estar atento e forte / não temos tempo de temer a morte”, agora nos encontramos apavorados de não tê-la no palco com aquela força da natureza causando, saracoteando, provocando o público, fazendo cada testemunha de seu dom se beliscar para ter certeza de que ela era real, de que aquela energia e pasmo estavam mesmo acontecendo diante de si.
Gal roubava lágrimas de felicidade e não as devolvia. Doava risos e não pedia nada em troca.
Foram 56 anos de carreira desde que levou debaixo do braço canções de Caetano Veloso e Gilberto Gil. Ela participou do grupo Doces Bárbaros, definidor da contracultura da década de 1970, uniu Jovem Guarda e Tropicália, casou Bahia com Rio de Janeiro, misturou o suingue com rock, aproximou a MPB da poesia de Jards Macalé e Waly Salomão, revelou compositores como Luiz Melodia, consagrou Jorge Ben Jor, apoiou a novíssima geração de cantoras na figura de Marília Mendonça, ganhou admiração internacional com o álbum produzido pelo americano Arto Lindsay — “O sorriso do gato de Alice", de 1993 —, ingressou no Hall da Fama do Carnegie Hall em 2001.
Não cabe no mapa o que ela fez.
Dificilmente cantaremos Meu bem, meu mal, Chuva de prata, Vapor barato e Barato total deslocados do seu timbre. É agora uma voz interior em seus passionais ouvintes.
Talvez a baiana tenha voltado a ser Maria da Graça Costa Penna Burgos. Deixou a exuberância de Gal Costa para nós.