Quando a minha mãe me pedia para cuidar do leite, eu já sabia que teria que limpar o fogão.
Não existia chance de apagar o leite antes que fervesse e transbordasse. Nunca alcancei tal proeza. Nem eu, nem ninguém na história da humanidade. Não se tratava de um fato comprovado, de algo real e acessível, mas de um desejo familiar impossível.
Eu permanecia por dez minutos olhando fixamente para a leiteira que aquecia, sem piscar, sem pestanejar, focado, concentrado, mas era virar um pouco o rosto para o lado que o leite subia e sujava tudo. Um descuido mínimo e o vulcão branco entrava em erupção, deitando suas lavas pelos cilindros. Um cumprimento inofensivo, um “bom dia!” a um irmão que surgia no corredor, e jogava fora o meu turno de vigília.
Busquei a vida inteira apanhar o leite antes do vazamento e nunca consegui. Foram dezenas, centenas de vezes mirando o bico da leiteira amassada, num jogo de estátua, mas sempre eu perdia, sempre eu piscava.
Os minutos de desatenção custavam minha paz de espírito, roubavam o tempo de tomar café com calma e de ir para a escola sem pressa.
Ela me ganhava na hipnose, na paciência, e me via depois, fracassado, resignado, passando a esponja entre as bocas de fogo. Bocas que riam da minha cara. O fogão bebia grande parte do leite de casa – sobrava nem metade para nós.
O fogão se lambuzava com o meu desperdício. Foi o maior bullying da minha infância.
Nunca decifrava como o líquido da nata se solidificava com tamanha rapidez. Virava subitamente cola, chiclete antigo. Havia uma ciência para desgrudar o visco e não arranhar a chapa.
Os minutos de desatenção custavam minha paz de espírito, roubavam o tempo de tomar café com calma e de ir para a escola sem pressa. Chegava tarde na aula com cheiro de detergente entre os dedos, inventando desculpas cada vez mais extravagantes para a professora. Os atrasos foram registrados diversas vezes em minha agenda; às vezes ganhava meia presença. Nunca compreendi o significado de estar presente pela metade. Na escola, deveria estar mais perto da ausência do que da presença. Se contassem os meus olhares distraídos pela janela, se computassem os meus sonhos acordado, poderia conseguir uma ausência inteira.
Eu me atrapalhava com os horários do toque do sino porque me condicionava à responsabilidade de arrumar a bagunça antes de a minha mãe suspeitar e descobrir o meu vexame.
Impelia-me, por uma obrigação moral, a deixar a cozinha como antes, recuperar o brilho do aço com álcool, liberando o uso do espaço para o almoço. Só que o acidente envolvia outras panelas na rodovia das grades, e exigia também lavar a louça.
Acredito que a leiteira possuía um sensor facial. É a única explicação possível. Ao mínimo movimento, ela regurgitava. Não havia como remediar, suspirar, gritar, espernear. Nada impedia a correnteza cálida rompendo os diques.
O que eu gostaria de mudar no meu passado? A leiteira. Sem sombra de dúvida, a leiteira. Queria uma vez na vida girar o botão para o lado direito antes do seu silvo borbulhante, do sibilo da tragédia doméstica.