Em menos de dez anos, quem viajar ao interior do Estado poderá ter a impressão de já ter visto a paisagem em férias no Nordeste. No lugar dos intermináveis campos de soja, começarão a surgir barreiras de canaviais. À beira da estrada, colunas de cultivares com folhas compridas, apontando para baixo, denunciarão: ali vai dar mandioca. Galpões outrora usados como abatedouros passarão a dar espaço para fazendas de café ou algodão.
Impensável? Não. Ao menos é o que indica artigo escrito por dois cientistas brasileiros e publicado na revista Environment and Development Economics, da Universidade de Cambridge. O artigo aponta que o aquecimento global já afeta a agricultura no país, e, em breve, culturas que dependem de clima ameno para se desenvolver decrescerão no Rio Grande do Sul.
A conclusão é de que no Sul, no Sudeste e no Centro-Oeste a produção de milho, soja e arroz se reduzirá em área e produtividade até 2020, em razão de alta temperatura e acúmulo de gases na atmosfera.
- Os dados também consideram as estiagens, que tendem a se tornar frequentes - diz um dos autores da pesquisa, Gustavo de Moraes, professor de Economia da Pontifícia Universidade Católica (PUCRS).
Nesse cenário, o estado perderia até 25% da área agricultável na segunda metade do século. Os produtores, então, procurariam alternativas melhor adaptáveis ao ambiente mais quente e menos chuvoso, como cana de açúcar, café e mandioca. O Rio Grande tem hoje apenas 30,7 mil hectares de área plantada com cana-de-açúcar, principalmente no Litoral Norte, mas já com crescimento no oeste gaúcho.
O estudo é controverso entre produtores. Na avaliação do presidente da Comissão de Grãos da Federação da Agricultura do Estado (Farsul), Jorge Rodrigues, o ganho de tecnologia deve garantir a manutenção da produtividade nas lavouras mesmo com um eventual aumento de temperatura.
- A tecnologia tem avançado rapidamente e contornado mudanças ambientais, tanto para frio quanto para calor. Hoje, já se planta trigo, uma cultura para clima ameno, no calorão do Centro-Oeste - reforça Rodrigues.
O aquecimento global ainda não tira o sono dos agricultores gaúchos. Juarez Durigon de Lemos, 54 anos, avalia que há muito barulho e poucos fatos sobre um aumento gradual da temperatura. Nos 950 hectares da propriedade da família, em Cruz Alta, Lemos planta soja, milho e trigo. Para reduzir gastos, passou a trabalhar com agricultura de precisão, o que também é uma forma de preservar a natureza, pois utiliza menos defensivos e fertilizantes, argumenta:
- A preocupação é melhorar a produção e garantir a rentabilidade, não acho que o Rio Grande do Sul deixará de produzir grãos.
Maior dificuldade deve ser com alimentos fora da estação
Os preços dos alimentos não devem ser diretamente afetados pela redução do cultivo no Rio Grande do Sul, mas podem ser influenciados pela mudança na escala mundial de plantio.
- Se a produção de alimentos cair em todos os países até 2070, haverá importante impacto no preço. Esse movimento só poderá ser revertido se houver uma nova "revolução verde", ou seja, o surgimento de novas tecnologias que aumentem a produtividade - analisa Moraes, da PUCRS.
Para o consumidor gaúcho, o principal impacto seria a dificuldade de encontrar alimentos fora da estação habitual. Ao reduzir as colheitas, os principais produtores tendem a priorizar o abastecimento do mercado interno antes de vender para outros Estados ou países. Tome-se o exemplo do tomate. Mesmo que o Rio Grande do Sul não produza o fruto de maio a novembro, os gaúchos não dão falta do item nas feiras e nos supermercados gaúchos. O tomate vem em quantidade suficiente de São Paulo, ainda que a preço mais alto.
- Atualmente, o consumidor não sente a sazonalidade na oferta. Mais adiante, o quadro pode mudar - afirma Moraes.
A boa notícia é que a variedade de produção do Rio Grande do Sul ainda é relativamente ampla em relação a outros Estados, o que favorece a substituição de alimentos.
Evidentemente, a fúria do aquecimento global não se restringirá aos pampas. O relatório do IPCC divulgado neste ano alerta para o fato de que as mudanças na agricultura mundial ocorreriam em 20 ou 30 anos, quando a temperatura global poderá subir até 2ºC. Outro estudo, da Universidade de Leeds, na Inglaterra, prevê reversão na curva ascendente de produção de alimentos na segunda metade do século. A pesquisa, publicada no início do ano na revista científica Nature Climate Change, indica que as estiagens tendem a crescer 25% no mundo neste período.
Mas as previsões não são totalmente irreversíveis. Ainda que considere o aquecimento global grave, o coordenador de políticas públicas do Greenpeace no Brasil, Sérgio Leitão, afirma que é precoce um alarme com relação à produção e distribuição de alimentos:
- É fundamental reconhecer o impacto das mudanças climáticas, mas também devem ser colocadas em prática ações para reverter os fatores que causam o aquecimento global, tanto por governo, quanto por empresas e indivíduos.
O estudo prevê, por exemplo, um incremento abrupto do fluxo migratório, com mais gente deixando regiões tropicais para buscar alimento em cidades de clima temperado, onde o impacto será menor.
Estiagens e risco maior para o rendimento de diferentes safras
O alerta trazido pela pesquisa encontra respaldo entre órgãos de pesquisas agrícolas. Pesquisadora em agrometeorologia da Fundação Estadual de Pesquisa Agropecuária (Fepagro), Bernardete Radin vê risco de aumento na frequência de fenômenos climáticos extremos, como La Niña, que torna mais longos os períodos sem chuva.
- As culturas de primaveraverão do Rio Grande do Sul, como milho e soja, são extremamente afetadas pela escassez de chuva. Em um cenário de aquecimento, a frequência de precipitações diminuirá, ampliando o risco de comprometimento de safras - afirma Bernardete.
Ela reconhece a possibilidade de alteração da geografia agrícola do Estado a longo prazo, com menor plantio de grãos e aumento do cultivo de cana-de-açúcar, mandioca e frutas tropicais, como mamão, manga e abacaxi. No entanto, é cética quanto ao impacto já no ano de 2020.
Na prática, os prognósticos mais pessimistas de aquecimento global não têm se confirmado no Rio Grande do Sul. Pesquisa recente da Fepagro mostrou que de 1976 a 2009 a temperatura média permaneceu estável em 92% das regiões agriculturáveis. Nas localizações em que subiu, atribui-se à urbanização.
* Colaborou Rodrigo Azevedo