A catástrofe climática que abateu o Rio Grande do Sul, com diversos rios estourando cotas de inundação após chuvas torrenciais, estabelece relação direta com a Lagoa dos Patos quanto ao escoamento continental. Os rios da bacia hidrográfica do Guaíba, duramente afetados pela chuva, descem até o Guaíba e, dali, ingressam na Lagoa dos Patos. Cruzam a larga extensão desse corpo d’água em uma viagem estimada entre cinco e dez dias.
Já no final da Lagoa dos Patos, na porção conhecida como estuário, zona de encontro da água doce com a salgada, todo o dilúvio que caiu sobre parte do Estado adentra uma área de estrangulamento e avança pela estreita boca de cerca de 600 metros dos molhes da barra do Rio Grande. Depois, segue para o Oceano Atlântico. É esse movimento vazante que viabiliza, de forma mais ou menos intensa, a redução do nível da própria lagoa e de bacias que invadiram diversas cidades gaúchas, causando destruição e morte.
Em uma equação complexa, o escoamento da Lagoa dos Patos é afetado diretamente pela direção dos ventos, velocidade de correnteza e volume dos corpos d’água doce e salgado na desembocadura do molhe, em uma queda de braço constante com o mar.
Os rios Jacuí, Antas-Taquari, Sinos, Caí e Gravataí deságuam no Guaíba e têm como destino natural a Lagoa dos Patos antes de ganharem o Atlântico.
O mesmo acontece com o Rio Camaquã e o Canal São Gonçalo - ligação com a Lagoa Mirim -, também contribuintes da Laguna dos Patos. Esses cursos registraram volumes históricos de cheia. O evento é considerado anômalo, fora de qualquer padrão. Especialistas afirmam cientificamente que tanto a laguna quanto o molhe, braços de pedra na desembocadura que acentuam o afunilamento, despejaram quantidades jamais medidas de água no oceano.
Vazão superou em cerca de oito vezes o escoamento médio
Se a gente considerar que uma caixa d’água tem um metro cúbico, são 20 mil caixas d’água por segundo passando no canal. Em outras enchentes fortes que tivemos, medimos valores de pico na casa de 10 mil metros cúbicos por segundo. E agora temos o dobro dos maiores eventos medidos.
AUGUSTO CAVALCANTI
Oceanólogo da Furg
Quando a Lagoa dos Patos está em uma situação de cheia, ela despeja a média de 2,4 mil metros cúbicos por segundo no Oceano Atlântico. Já é um volume considerado elevado.
No dia 10 de maio, a reportagem acompanhou a medição feita pelos oceanólogos Augusto Cavalcanti e Julia Galetti, ambos da Universidade Federal do Rio Grande (Furg). O resultado, identificado em outros momentos deste evento catastrófico, foi impactante: a Lagoa dos Patos estava com vazão de 20 mil metros cúbicos por segundo - ou 20 milhões de litros por segundo - na desembocadura do molhe. Isso é oito vezes mais do que os valores tradicionalmente medidos em períodos de cheia, mas sem enchente, do estuário.
— Se a gente considerar que uma caixa d’água tem um metro cúbico, são 20 mil caixas d’água por segundo passando no canal. Em outras enchentes fortes que tivemos, medimos valores de pico na casa de 10 mil metros cúbicos por segundo. E agora temos o dobro dos maiores eventos medidos — diz Cavalcanti.
Outro aspecto que auxilia a vazão é a correnteza. Na atual catástrofe climática, no canal que leva ao molhe, foram detectadas velocidades de 5 a 7 nós, quando o normal é cerca de 2,5 nós. O volume d’água foi tamanho que gerou aceleração.
— Ontem (referência ao dia 8 de maio) estava uma corrente de cinco a seis nós. É algo nunca enfrentado. Acima de cinco nós, temos de interromper (operações no porto) por questão de segurança. E ontem passou — comenta Romildo Bondam, diretor de Operações da Portos RS, gestora do terminal hidroviário de Rio Grande.
A forte influência dos ventos
O sopro dos ventos dos quadrantes sul e norte exerce papel decisivo na Lagoa dos Patos. Dependendo da direção, a água pode ser escoada mais rapidamente para o Oceano Atlântico ou ficar represada.
— O vento sudoeste (do quadrante sul) empilha a água e eleva o nível na costa. A água do mar vai entrar e o vento vai agir sobre a lagoa. Quando isso acontece, o Guaíba vai ser represado e o nível dele pode subir. Esse é o jogo do vento sudoeste — diz Osmar Möller Jr., professor titular aposentado do Instituto de Oceanografia da Furg.
O sopro do sudoeste, portanto, diminui a velocidade de correnteza, reduz o escoamento e tem o condão de represar o Guaíba. No sentido oposto, quem ajuda a despejar mais água no Oceano Atlântico é o vento do quadrante norte. Os especialistas citam a figura de uma gangorra para explicar o efeito eólico na disputa entre a lagoa e o mar. Quem está com volume maior, mais alto na boca do molhe, ganha carga hidráulica e vaza.
— O vento nordeste (do quadrante norte) ajuda a gangorra do lado da lagoa. Ele produz acúmulo de água na saída do estuário e aumenta a descarga para o mar — afirma Glauber Gonçalves, membro do comitê de avaliação e prognóstico de eventos extremos da Furg.
As medições feitas pelos especialistas facilitam a compreensão. Nos dias de vento do quadrante norte, as captações apontaram média de 20 mil metros cúbicos por segundo de vazante para o oceano. Nos momentos em que virou para o sudoeste, uma queda: 12 mil metros cúbicos por segundo. Esse valor é cinco vezes maior do que a vazão tradicional em períodos de alta da lagoa (2,4 mil metros cúbicos por segundo), mas, dado o ineditismo da atual catástrofe climática, torna-se motivo de preocupação.
— Mesmo com o vento vindo do sul, a vazão continuou muito alta. Bem maior do que o normal. A questão é: está vazando o suficiente para dar conta de toda a água que entra na lagoa? — reflete Cavalcanti.
O professor Elírio Toldo Jr., do Centro de Estudos de Geologia Costeira e Oceânica da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (CECO-UFRGS), fez medições do Guaíba nos dias 5 e 6 de maio e detectou a vazão de 30 mil metros cúbicos por segundo (30 milhões de litros) rumo à Lagoa dos Patos — isso sem contar as contribuições do Rio Camaquã e do Canal São Gonçalo.
— Levamos um susto e repetimos por horas. Esse volume jamais foi medido — diz Toldo.
Nos dias de vazão mais forte ao mar, cabe lembrar, a Lagoa dos Patos escoou a média de 20 mil metros cúbicos por segundo para o Atlântico.
A oceanóloga Galetti alerta que não se trata de uma conta simples de 30 menos 20, como se dez mil metros cúbicos por segundo representassem um excedente imediato no sistema. Um primeiro aspecto a destacar é que a água que sai do Guaíba tem o tempo de viagem de cinco a dez dias até a desembocadura. Logo, os impactos não são imediatos.
— O Guaíba tem cerca de 500 quilômetros quadrados. A Lagoa dos Patos tem 20 vezes mais, são 10 mil quilômetros quadrados. Quando aumenta a superfície, a altura diminui — destaca Möller Jr, apontando a maior capacidade da lagoa de receber a água do Guaíba, com menores cotas de inundações.
Outra observação é que, no trajeto de descida, uma parte da carga lançada pelo Guaíba é retida por zonas de banhado. Ainda assim, especialistas dizem que uma parcela do déficit de vazão contribui para inundar as costas das cidades e planícies à margem da lagoa.
Dentre os dados captados pelos especialistas da Furg, um deles chama atenção por dimensionar a fúria do evento climático. Em pelo menos um dia de vento do quadrante sul, a coluna d’água ignorou a barreira do mar e alcançou patamares próximos do recorde recentemente estabelecido.
— No dia 11 de maio, o vento sudeste não foi suficiente para frear. Foram 19 mil metros cúbicos por segundo de vazão. Oito vezes acima da média — destacou Gonçalves.
Apesar das descargas recordes, Toldo aponta saturação da Lagoa dos Patos diante da proporção “descomunal” do evento. Ele voltou a aferir a vazão do Guaíba no dia 15 de maio e identificou 23 mil metros cúbicos por segundo. Comparada com a medição anterior, em condição semelhante de cota, houve uma redução de 7 mil metros cúbicos.
— Está entrando mais água no sistema do que saindo. A lagoa está começando a ficar saturada. É o principal fator da redução da vazão do Guaíba, embora os níveis continuem brutais — avalia Toldo.
Ele destaca que, em situações normais e de equilíbrio, o Guaíba vaza a média de 2 mil metros cúbicos por segundo, próximo do valor da Lagoa dos Patos.
— Os dois sistemas, a bacia hídrica do Guaíba e a Lagoa dos Patos, funcionaram dentro das suas naturezas, como acontece há séculos. O que não funcionou e alterou o equilíbrio foi a anomalia climática. A escala do problema é regional. Não é local — alerta Toldo.
Apesar das cheias, molhe funcionou, avaliam especialistas
O debate público durante as enchentes trouxe questionamentos. Um deles é se o molhe da barra do Rio Grande, na saída da Lagoa dos Patos para o mar, teria brecado o fluxo de escoamento e contribuído para a elevação dos níveis de rios. Na avaliação de oceanólogos, ocorreu o contrário. A estrutura de afunilamento, com dois braços de pedra de quatro quilômetros cada, calado entre 16 metros e 20 metros, é o que garante vazão mais célere. Parte dos estudiosos concorda com a figura de linguagem da mangueira de jardim parcialmente vedada na boca por um dedo. Quando uma pessoa faz isso na sua casa, ela consegue espirrar água mais longe e com maior velocidade. Figurativamente, isso é o que acontece na desembocadura do molhe, com a ponderação de que, do outro lado, existem o mar e o vento para influenciar.
— O objetivo do molhe é aumentar a velocidade de vazamento da lagoa. A estrutura hidráulica funcionou. Os molhes cumprem o seu papel. A gente não tinha a convicção de que ele, submetido a um cenário absolutamente anômalo, contribuísse aumentando a vazão ao nível que aumentou — comentou Gonçalves.
Os molhes da barra do Rio Grande foram concluídos em 1915 para aprimorar a navegabilidade do porto. Antes da gigantesca obra, havia deltas formados pelo acúmulo de areia e sedimentos carregados pela água na saída da Lagoa dos Patos.
— (Sem o molhe) Teríamos muitos bancos de areia e até algumas ilhotas ali — diz Gonçalves.
Lauro Barcellos, diretor do Complexo de Museus da Furg, comenta que em 1850, antes do molhe, “a barra chegou a ficar com 2,20 metros de profundidade”.
— Negar a importância dos molhes é quase uma inconsequência. Ele é importante para garantir a navegabilidade e a vazão. O canal entre os molhes é profundo. Quanto mais profundo, menos precisa de largura —avalia Barcellos.
Para o professor Fernando Dornelles, do Instituto de Pesquisas Hidráulicas da UFRGS, a manutenção do Guaíba elevado não está diretamente relacionada ao volume vazante na barra do Rio Grande.
— O Guaíba alto não é tanto pela água que não consegue sair. É pela quantidade que entra. É muita água chegando. É um processo natural. O Guaíba não tem declividade, é bastante plano. Ele começa a encher de um lado e sobe o seu nível. O enchimento de um dos lados é o que faz ele escoar pelo outro (por gravidade) — diz Dornelles.
Relação da lagoa com Rio Grande
Até o término da apuração desta reportagem na Zona Sul, no dia 13 de maio, não se confirmaram previsões pessimistas de que a cidade de Rio Grande, com a descida da água do Guaíba para a Lagoa dos Patos, enfrentaria enchentes tão catastróficas quanto as verificadas na Região Metropolitana e no Vale do Taquari.
Se pegarmos uma caneca e despejar água dentro até encher, vamos experimentar uma variação de nível. Botamos dez centímetros dentro da caneca. Se virarmos a água da caneca dentro de um prato de sopa, vamos perceber que o mesmo volume vai subir dois centímetros. Por que? A área do recipiente aumentou e eu tenho uma cota menor. Nessa comparação muito rústica, é como se Rio Grande fosse um gigantesco prato de sopa.
GLAUBER GONÇALVES
MEMBRO DO COMITÊ DE AVALIAÇÃO E PROGNÓSTICO DE EVENTOS EXTREMOS DA FURG
Foi verificado em Rio Grande, município junto da desembocadura do estuário, um movimento de sobe e desce da lagoa. A partir do final da tarde ela cresce sobre as bordas do município. A reportagem de GZH constatou avanços de pelo menos 500 metros sobre a zona urbana, invadindo casas e comércios. Mas, na manhã seguinte, a enchente recua parcialmente. Estudiosos dizem que isso é consequência do efeito gangorra entre a lagoa e o mar. Quando o estuário perde velocidade de vazão, ele acumula água e fica mais cheio. Neste momento, ganha carga hidráulica e escoa com força.
— A lagoa tem um regime próprio de variação ao longo do dia. É um movimento cíclico de maiores e menores elevações. A gente percebe que isso acontece num período de 24 horas — diz Gonçalves.
A consequência disso é que casas anoitecem tomadas por uma cota de 30 centímetros, por exemplo, e amanhecem sem água. Em diversas zonas da cidade a cheia não é perene, embora também resulte em perdas e desabrigue centenas de pessoas. As regiões mais castigadas ficam nas margens da lagoa. O vento, mais uma vez, conta. O sopro de sudeste ajuda a empilhar água na costa de Rio Grande. Já o sudoeste empurra para a região do Guaíba.
Outro aspecto relevante a diferenciar Rio Grande é a cota de inundação. Enquanto no restante do Estado cenas assustadoras mostraram casas inteiras submersas, as cotas na cidade não costumam passar de 1,5 metro.
— Por que os níveis não se elevam tanto aqui (Rio Grande), como em Porto Alegre? Por causa do relevo. Aqui temos predominância de planícies. A água não alcança cotas de inundação muito grandes, mas se espalha, atingindo áreas extensas — pontua Cavalcanti.
Já em outras regiões gaúchas severamente alagadas, há uma superfície mais acidentada que funciona como acumuladora.
— Se pegarmos uma caneca e despejar água dentro até encher, vamos experimentar uma variação de nível. Botamos dez centímetros dentro da caneca. Se virarmos a água da caneca dentro de um prato de sopa, vamos perceber que o mesmo volume vai subir dois centímetros. Por que? A área do recipiente aumentou e eu tenho uma cota menor. Nessa comparação muito rústica, é como se Rio Grande fosse um gigantesco prato de sopa — exemplifica Gonçalves.