Véus de águas cristalinas, trilhas em meio a um cenário verde difícil de ser encontrado em grandes cidades e a possibilidade de praticar atividades em meio à natureza têm cada vez mais atraído interessados. A visita a espaços turísticos que proporcionem experiências ao ar livre é uma prática antiga, mas intensificada a partir da pandemia, e isso em todo o mundo. No Rio Grande do Sul, embora haja bons exemplos de gestão público-privada relacionadas ao turismo de natureza, como o município de Três Coroas, no Vale do Paranhana, ainda há um caminho a ser percorrido quando se fala em conscientização ambiental relacionada ao ecoturismo.
Um exemplo de descuido por parte dos visitantes e de falta de gestão por ainda estar em disputa judicial é a Cascata das Andorinhas, em Rolante, a 115 quilômetros de Porto Alegre. Encravada entre dois paredões rochosos que servem de abrigo a andorinhas, a cascata de 15 metros de altura é um dos cenários gaúchos mais compartilhados em fotos nas redes sociais e recebe turistas de todas as partes do país. A piscina natural, que costuma ser iluminada pelo sol próximo ao horário do meio-dia, chega a ter quatro metros de profundidade no trecho mais próximo da queda d’água.
Com placas informativas indicando o caminho e até solicitando para as pessoas não riscarem as paredes de pedra, a área apresenta sinais de abandono. O respeito, a conexão e a contemplação, palavras registradas numa das placas de orientação, pareciam ter ficado pelo caminho.
A entrada é livre, sem qualquer controle, e há um estacionamento improvisado. O caminho de cerca de 800 metros que leva à cascata se divide entre uma estrada em meio à mata e uma trilha que costeia o córrego. Em dois momentos é preciso passar por dentro do curso d’água. Para cruzar alguns degraus formados por pedras e árvores caídas pelo caminho, é preciso algum preparo físico.
As marcas da presença de turistas sem qualquer educação estão por toda a parte, desde o lixo deixado próximo ao córrego que se forma a partir da cascata (garrafas plásticas e latas de alumínio, principalmente), passando pelo fogo feito ao lado dos paredões que servem de pouso aos pássaros até as escritas deixadas nas paredes de pedra.
Na manhã em que a reportagem esteve no local, num dia de semana, cerca de 15 pessoas compartilhavam o espaço em pequenos grupos. Um deles, com cinco, havia levado lanches para passar o dia. Os demais aproveitaram alguns minutos, fizeram fotos e foram embora. Próximo de uma sacola com lixo, um besouro se esforçava para seguir o seu trajeto, e, sobre uma churrasqueira improvisada, uma rã observava a movimentação. Pelo caminho, porém, a reportagem passou por outros dois grupos que carregavam caixas térmicas na direção da cascata.
Segundo a secretária de Educação, Esporte e Turismo de Rolante, Simone Tadiotto, a área que circunda a cascata tem 10 proprietários, e a desapropriação está sendo discutida de forma judicial. Ao mesmo tempo, ressalta Simone, há tratativas com investidores da iniciativa privada para assumirem o espaço.
— Hoje, vemos que a prefeitura tem de ser um apoio com a infraestrutura, melhorias de estradas e energia elétrica. Mas precisamos passar para o privado ganhar o seu dinheiro e isso dar retorno à prefeitura. A ideia é fazer um parque de preservação, e não de aglomeração, com restaurante, banheiros e estacionamento, deixando as trilhas e a cascatas longe da movimentação geral. O local tem esse nome porque as andorinhas fazem seus ninhos nos paredões de pedras. Se tiver fogo e fumaça, essas aves vão deixar o lugar. A ideia é preservar as andorinhas e a mata nativa. Nossa meta é resolver a situação até o final deste ano — explica a secretária.
A menos de sete quilômetros dali, outro fenômeno de visitação teve destino diferente na década passada. As cascatas do Chuvisqueiro e de Três Quedas, no município vizinho de Riozinho, hoje têm administração vinculada à iniciativa privada, com cobrança de ingresso para os visitantes. A área conta com estacionamento, banheiros, restaurante, espaço para acampamento, churrasqueiras e equipe para manter limpo o entorno da queda d’água de 76 metros de altura, que chega a ter 15 metros de profundidade. Em toda a extensão, há limitadores indicando o espaço seguro para tomar banho.
Entre novembro e março, o camping disponibiliza um guarda-vidas nos finais de semana e feriados, em horários pré-determinados. Cerca de 50 metros antes do acesso à cascata, há uma grande placa com orientações aos banhistas: não são permitidos os cortes de árvores, atividades de caça e pesca, fazer fogueira ao pé das árvores, som automotivo e deixar lixo no chão. Apesar de todos os cuidados, a administração revela dificuldades para conter a quantidade de pessoas ao redor da cascata nos finais de semana de verão, quando a fila de carros fica a perder de vista na estrada e até 3 mil visitantes circulam pela área.
Para o geólogo Rualdo Menegat, doutor em Ciências na área de Ecologia de Paisagem e professor do Instituto de Geociências da UFRGS, cuidar de patrimônios ambientais, ecológicos, geológicos e paisagísticos, assim como espaços destinados ao ecoturismo, é como cuidar de um jardim, com atenção permanente para não ser desconfigurado. No caso das cascatas Andorinhas e Chuvisqueiro, Menegat vai além: ambas mereceriam ser tombadas como patrimônio ecológico-geológico-geomorfológico do Estado pela beleza, pela localização e pela função ecológica, pois têm fauna e flora peculiares.
— O fato de serem locais de bem-estar, que atraem muitas pessoas, faz com que mereçam ter gestão. É importante que os municípios e o Estado reconheçam como um patrimônio geológico e que, com isso, passem a ter um plano de gestão sobre a visitação desses lugares, incluindo procedimentos em que se inserem a quantificação da carga turística que um local desses pode receber para que não haja dano. O fato de reconhecer o patrimônio não quer dizer impedimento de visitação, mas cuidado e profissionais que possam trazer o desenvolvimento local sustentável e promovam a visitação como fator de impulsão da economia local. Esses cuidados podem ser com parceria privada, mas precisa ter competência — afirma Menegat.
Doutor em Geografia Física e Ordenação do Território, o professor do departamento de Geografia da UFRGS Luis Alberto Basso ressalta que, para desenvolver o turismo com base sustentável, é preciso um planejamento ambiental capaz de diminuir os impactos negativos sobre o terreno. Entre os problemas mais comuns encontrados em ambientes naturais transformados em atrativo turístico e apontados por Basso estão o acúmulo de resíduo sólido, capaz de contaminar o solo e as águas superficiais subterrâneas e causar a proliferação de insetos vetores de doenças, como mosquitos e moscas, o desmatamento descontrolado para abertura de trilhas que reduz a vegetação e, consequentemente, os polinizadores, como abelhas e pássaros, a compactação do solo mais próximo das margens com o pisoteio dos visitantes e dos automóveis, deixando-o mais suscetível à erosão.
— Em cachoeiras e cascatas, os estacionamentos precisam estar distantes (da queda d’água) para evitar diminuir a biodiversidade. Carros e motos trafegando próximos de rios e arroios podem liberar óleo para o ambiente. Atenção também à poluição sonora, que inclui a música alta: isso afugenta os animais — acrescenta Basso.
O geógrafo esclarece que, muitas vezes, não é o número de visitantes que impacta, mas o comportamento deles. Por isso, é preciso conscientizar o turista. Basso sugere ações aparentemente simples, mas que podem impactar no cuidado com o meio ambiente, como a colocação de painel informativo na entrada do parque, a distribuição de cartilhas com orientações e até um vídeo informativo em local específico, caso a área seja privada.
O pioneirismo de Três Coroas
Destinos de ecoturismo são aqueles que utilizam o próprio ecossistema com responsabilidade e promovem o contato com ambientes naturais, evitando impactos para a fauna, a flora e a região como um todo. Isso inclui os moradores locais, que têm no turismo uma fonte de renda. Até por isso, é comum a cobrança de taxas ambientais como medidas para a preservação do verde. No Brasil, entre os destinos mais conhecidos que envolvem ecoturismo estão Bonito (MS), Chapada Diamantina (BA), Fernando de Noronha (PE) e Chapada dos Veadeiros (GO).
No Rio Grande do Sul, Três Coroas foi um dos primeiros municípios a apostar no ecoturismo e, principalmente, na parceria público-privada como fonte de fortalecimento para a economia local, transformando as belezas naturais em atrativos hoje recomendados, inclusive, fora do Brasil por trabalhar de forma consciente o turismo de natureza. Ainda no final dos anos de 1980, a prefeitura inaugurou o que agora é identificado como o maior centro de turismo de aventura do sul do país: o Parque das Laranjeiras, com 60 hectares – destes, somente 10 hectares são usados para o turismo.
De acordo com o turismólogo e diretor de turismo do município, Cristian Krummenauer, ex-atleta da seleção brasileira de canoagem, o parque foi um dos pioneiros no turismo de aventura no Brasil e o primeiro no Rio Grande do Sul a ter rafting. Em 1997, o Laranjeiras sediou, pela primeira vez na América Latina, o campeonato mundial de canoagem slalom. Krummenauer foi um dos atletas representantes do Brasil nessa competição. O Campeonato Panamericano de Canoagem, previsto para ocorrer em abril, será disputado nas raias montadas no Rio Paranhana, dentro do parque.
Quando a comunidade começa a perceber que o turismo é uma solução para desenvolvimento social, renda e empregabilidade, se torna mais responsável para o meio ambiente
CRISTIAN KRUMMENAUER
Turismólogo e diretor de turismo de Três Coroas
Atualmente, além de camping, pousada, restaurante, área de lazer, o Laranjeiras conta com três operadoras responsáveis por ofertar a prática de rafting. O parque é municipal, mas Krummenauer explica que a Associação Trescoroense de Canoagem tem a concessão de utilização porque disponibiliza de forma gratuita a escola de canoagem e é quem organiza as competições no local.
— Muitas vezes, o poder público não tem tantos braços. Quando se começa a dividir a gestão de forma responsável, gera-se oportunidade de turismo e renda para os locais. E, quando a comunidade começa a perceber que o turismo é uma solução para desenvolvimento social, renda e empregabilidade, se torna mais responsável para o meio ambiente — explica o diretor.
Na mesma região, outros dois parques privados também disponibilizam turismo de aventura ou, simplesmente, área para contemplação do Rio Paranhana e da Mata Atlântica, presentes em todo o município.
— Esse cenário de ter, em uma mesma localidade geográfica, diferentes empresas atuando em total harmonia nos gerou um diferencial de acesso ao mercado muito grande. Quando remamos juntos no mercado, vamos muito mais longe — enfatiza Krummenauer.
Para o diretor de Turismo, Três Coroas é um parque natural a céu aberto, com um rio cruzando do interior à área central, e, ainda que boa parte das iniciativas sejam privadas, a administração municipal faz questão de intensificar a participação da comunidade em todas as movimentações, seja por meio da educação ambiental nas escolas, pelo replantio de mudas nativas ou a identificação de árvores espalhadas pelo município. A meta é fazer com que a comunidade de quase 30 mil habitantes se preocupe com o maior bem do município: o Paranhana.
O fato de reconhecer o patrimônio não quer dizer impedimento de visitação, mas cuidado e profissionais que possam trazer o desenvolvimento local sustentável e promovam a visitação como fator de impulsão da economia local
RUALDO MENEGAT
Geólogo e doutor em Ciências na área de Ecologia de Paisagem e professor do Instituto de Geociências da UFRGS
— Realmente, procuramos fazer práticas com ações, e não só colocar placas de sinalização. Ao invés de colocarmos as pessoas de costas para o rio, as colocamos dentro dele, porque isso gera diversão, bem-estar e preservação. O principal passo dos municípios é conscientizar o empresário e trazer ao conhecimento dele os procedimentos de boas práticas para que se possa ter um turismo cada vez mais saudável e responsável — diz Krummenauer.
Um exemplo familiar
Em Caxias do Sul, na Serra, uma família da localidade de Nova Palmira decidiu derrubar as estruturas sólidas de um empreendimento em meio à natureza para, justamente, preservá-la. Foi pensando em recuperar o trecho do Rio Bello que passava por dentro da propriedade de dois hectares que a empresária Daiane Pezzi, 40 anos, comprou uma “briga” até com o pai, Jaime Luiz Pezzi, 64 anos, que em 2008 adquiriu a área pertencente a um parente, onde já existia há mais três décadas um balneário com camping, famoso na região.
Contrária à manutenção do camping pela família, por divergência de ideias Daine deixou o negócio e foi atuar na área da engenharia civil. Em 2015, quando a mãe, Loiva Pezzi, 57 anos, adoeceu e passou por um longo tratamento, a filha precisou voltar a ajudar a família:
— Naquele momento, eu disse: “Olha, se nós continuarmos com essa atividade neste local, algumas coisas vão acontecer. Essa atividade está degradando o espaço, a natureza, e contempla somente um público que não entende que não pode cortar uma árvore e que não pode fazer churrasco ao lado de uma árvore. Vamos ter que mudar”.
A filha, então, apresentou aos pais um projeto que havia elaborado lá em 2008: transformar o espaço em uma pousada rural, mantendo o café colonial, mas tirando totalmente a área de camping. A empresária contou com duas consultorias do Sebrae para fazer as transformações. Jaime, enquanto isso, resistia às mudanças.
Daiane conta que o processo de transição do público não foi difícil. Ela começou dificultando o acesso com novas regras, como o aumento de preço da entrada e a proibição de som alto no local. Ao mesmo tempo, foi atualizando o serviço do restaurante existente no local. Aos poucos, o público foi mudando, até Daiane dar o passo seguinte: acabar, definitivamente, com o camping.
— Certo dia, meu pai e minha mãe saíram. Então, contratei uma equipe para retirar todas as mesas e churrasqueiras do camping e a identificação visual espalhada nas rodovias. Quando eles voltaram, foi difícil — recorda, aos risos.
Por um determinado tempo, Daiane e o pai ficaram sem se falar. O elo de ligação era a mãe, enquanto o negócio era tocado. Em março de 2019, o camping foi fechado, e o primeiro café colonial da Famíglia Pezzi teve todos os ingressos vendidos. Este é, até hoje, o negócio da família.
O lugar onde era o camping passou a ter a área preservada. Desde o fim de 2022, o espaço vem recebendo estudantes da escolas rurais para conhecer a história da família.
— A intenção é mudar a narrativa de que ficar no meio rural é difícil e de que as questões ambientais são difíceis no meio rural. Tudo é possível – reflete Daiane.
Um dos próximos passos do empreendimento é criar um ecomuseu, com o auxílio de uma turismóloga contratada. A intenção é tornar o local atrativo turístico por ter as ruínas da primeira ponte da Estrada Municipal do Imigrante e as ruínas de uma antiga represa que movimentou o primeiro moinho da região.
E como ficou a relação entre pai e filha? Hoje, Daiane afirma que vai muito bem. Jaime demonstra orgulho pelo negócio e foi responsável pelo plantio de mais de 200 árvores ao longo da margem do arroio para recuperar a mata ciliar da propriedade. Ele também recicla todo o material consumido no empreendimento. Tornou-se um defensor da natureza.