O álbum de família dos felinos mais misteriosos da América do Sul acaba de ser completamente repaginado por pesquisadores do Brasil e da China. Depois de uma análise que levou em conta a pelagem, os crânios, o DNA e a distribuição geográfica dos animais, o grupo de cientistas concluiu que existem cinco espécies diferentes de gatos-palheiros no território sul-americano.
Duas delas podem ser encontradas no Brasil: o Leopardus braccatus, presente numa ampla área do cerrado, e o Leopardus munoai, um felino dos pampas, cujo território corresponde principalmente à região fronteiriça entre o Rio Grande do Sul e o Uruguai. As outras três espécies vivem principalmente nos Andes e em regiões de vegetação mais aberta na Argentina. Antes do trabalho, era comum que se postulasse a existência de apenas uma espécie de gato-palheiro.
A dificuldade de classificar corretamente esse grupo de felinos de tamanho modesto (cerca de 3 kg) depende, em parte, da extrema raridade (ou timidez) dos animais.
— Um colega do Rio Grande do Sul me contou que, em mais de dez anos de trabalho de campo, só conseguiu ver os bichos três vezes, das quais uma foi por armadilha fotográfica (quando a câmera dispara automaticamente assim que o animal ativa o sensor dela) e outra foi num atropelamento — diz Fabio Oliveira do Nascimento, do Museu de Zoologia da USP, que é um dos autores do estudo.
Os gatos-palheiros são bastante raros em zoológicos e os espécimes armazenados em museus também não são abundantes.
Junto com seus colegas Jilong Cheng e Anderson Feijó (ambos do Instituto de Zoologia da Academia Chinesa de Ciências), Nascimento conduziu a comparação mais ampla já feita de espécimes de gatos-palheiros, presentes em museus de vários países sul-americanos, dos EUA e da Europa.
— Em muitos trabalhos anteriores, isso não tinha sido feito. Era comum que cada pesquisador levasse em conta apenas as amostras do seu próprio museu — conta ele.
O grupo levou em consideração também dados sobre o material genético dos felinos obtidos em estudos anteriores e, finalmente, realizou uma análise sobre a relação entre características ambientais das diferentes regiões da América do Sul e a distribuição geográfica dos mamíferos. Nesse caso, a intenção era verificar se havia uma correlação entre a aparência dos gatos-palheiros e os diferentes ambientes, o que sugeriria uma adaptação das várias linhagens dos bichos a zonas específicas do território.
E, de fato, foi isso o que a combinação dos dados mostrou: as diferenças significativas na aparência dos gatos-palheiros correspondem, de modo geral, a partes distintas da América do Sul, com baixa sobreposição entre elas. Isso indica que as cinco grandes populações identificadas pelos pesquisadores só estão cruzando entre si, afirma o trabalho, publicado recentemente na revista científica Zoological Journal of the Linnean Society.
Outro resultado importante é que são espécies relativamente jovens, as quais começaram a se separar umas das outras cerca de meio milhão de anos antes do presente, durante o Pleistoceno (a Era do Gelo). Na América do Sul e no mundo, o Pleistoceno foi marcado por grandes flutuações climáticas, mas, de modo geral, essa época geológica teve diversos períodos relativamente mais secos e frios, com expansão das áreas de vegetação aberta.
Isso provavelmente permitiu que os gatos-palheiros, originalmente animais andinos, conseguissem se espalhar rumo ao leste do continente. Conforme o clima se tornou mais parecido com o atual, as florestas tropicais voltaram a crescer, fazendo com que diferentes populações dos felinos ficassem separadas umas das outras.
Se a classificação dos animais agora ficou mais clara, ainda falta descobrir quase tudo acerca de seus hábitos e comportamento. Sabe-se que, como outros felinos de porte modesto, os gatos-palheiros são solitários e caçam pequenos vertebrados.